Bem-vindo a Napoli

Paula Vivian

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Sinopse: Quando uma brasileira se muda para Nápoles, ela não imagina que está prestes a se apaixonar. Pela cidade, pela torcida napolitana e por um certo zagueiro.

Capítulo 1


Nápoles, Itália – 07 de janeiro de 2006

balançava os pés, impaciente com o desenrolar do jogo. Zero a zero. Não era o ideal, mas ao menos lhes garantia um ponto. Uma reclamação escapou de seus lábios ao ver o atacante rival se aproximar perigosamente do gol. O zagueiro de seu time caiu ao tentar o corte, mas a ação foi o suficiente para desestabilizar o adversário, que finalizou para fora. soltou o ar de seus pulmões, aliviado; então percebeu que o zagueiro napolitano permanecia no chão, as mãos pressionando o joelho com uma careta de dor no rosto. O jogador em campo balançou a cabeça em um lamento e ergueu as mãos, sinalizando a substituição.
!
se virou tão rápido para o homem que gritava o seu nome, que uma dor aguda tomou seu pescoço. Bastou um gesto do técnico e o rapaz saltou do banco, tirando o colete de reserva e dirigindo-se à lateral do gramado. Saltava e corria, movimentando os braços para aquecer o corpo. O coração batia disparado, cada batida ressoando em seu peito como uma caixa de som no volume máximo. O sangue pulsava forte em suas mãos e em seus ouvidos. Aquele era o momento que tanto esperara. Estava acontecendo. Entraria em campo vestindo a camisa do time que amava.
Dias antes, ao assoprar as velas de seu décimo sexto aniversário, havia desejado a mesma coisa que desejava todo ano, desde os cinco anos. Jogar pelo Napoli. E agora estava acontecendo. Seus olhos percorreram as arquibancadas – lotadas, apesar de tudo. Não os encontrou, mas sentia o olhar do pai e do avô sobre si. Sentia a benção dos dois. Inspirou fundo, o coração ainda acelerado, e abriu e fechou as mãos algumas vezes, tentando superar o leve tremor que tomava seu corpo. Não por nervosismo, mas por um misto de ansiedade e felicidade. O momento com que tanto sonhara havia chegado. Estava ali, diante dele.
Grava lhe ofereceu um sorriso e um tapa nas costas ao deixar o campo, sussurrando-lhe as palavras ‘Arrebenta, garoto’, e então cruzou a linha que delimitava o gramado. Pé direito na frente, cabeça erguida. O nome nas costas e o escudo do Napoli no peito. Uma única missão: ajudar seu time. Ajudar seu time a vencer a partida. Ajudar seu time a vencer a série C.
correu pelo campo e se posicionou a tempo de receber o passe curto do goleiro, sentindo a bola sob seus pés em pleno San Paolo. Em casa. Um toque e, com ele, a realização de um sonho construído com afinco e dedicação. Estava preparado.
Era assim que começava, com uma primeira partida. A primeira de muitas.

~💙~

São Paulo, Brasil – 01 de agosto de 2010

A sala estava escura, exceto pela luz amarelada que emanava das duas velas sobre o bolo, mas era o suficiente para enxergar as pessoas ali. Seus pais, os parentes mais próximos e alguns amigos. Odiava aquela parte. Ficava sem graça com a atenção de todos voltadas para si e nunca sabia o que fazer com as mãos. Não era fã de aniversários. As ligações por obrigação de gente que, nos outros dias do ano, sequer lembrava que ela existia; as mensagens talvez bem-intencionadas, mas vazias. O lembrete anual de todas as coisas que ainda não tinha realizado e a terrível percepção de que agora tinha um ano a menos para realizá-las. Os fracassos já esquecidos vinham à tona um a um, em uma lista que ela preferia rasgar, mas que parecia tatuar-se em sua mente.
Aquela, no entanto, era a pior parte: a família e amigos cantando animados, os olhos fixos nela como se tivesse realizado algum grande feito. Quando a música chegou ao fim, em uma explosão de gritos e aplausos, sorriu e assoprou as velas de seu vigésimo segundo aniversário. Não fez nenhum pedido, nunca fazia. Não era dada a sonhos inalcançáveis e desejos impossíveis, traçava metas e seguia um plano.
Cortou o primeiro pedaço de bolo e o ofereceu à mãe, o coração apertando. Aquela era também uma festa de despedida. Pegaria o avião para Roma dali a duas semanas. Um ano longe. Morreria de saudades, mas um ano passava rápido. Em um piscar de olhos estaria de volta, com o mestrado concluído e pronta para iniciar o doutorado. Já tinha tudo organizado. Planejava aquela viagem desde o segundo ano da faculdade de letras, quando optara pela habilitação em literatura clássica. Foi também o ano em que conhecera a professora Bianchi, sua orientadora durante a iniciação científica e a pessoa que havia lhe apresentado a ideia do mestrado em Nápoles.
Com seus óculos redondos e um sotaque simpático, a professora mencionava com carinho a universidade onde estudara antes de se mudar para o Brasil e de bom grado ajudou com todo o processo. Escreveu a carta de recomendação, e juntas montaram um projeto de pesquisa sobre um dos assuntos que mais encantava a brasileira: as obras do poeta Virgílio. Sua dissertação não seria sobre a obra mais famosa de poeta, mas sobre aquela que costumava ficar esquecida. As Geórgicas.
Graças às suas notas, conseguira não apenas uma vaga para cursar o mestrado em uma das universidades mais antigas do mundo, mas conseguira também uma bolsa de estudos. Havia se dedicado com afinco ao longo da graduação e havia conseguido. Mal podia acreditar que depois de tanto esforço aquilo estava mesmo acontecendo.
A pequena festa de aniversário se estendeu por horas, mesmo após cortar o bolo. Aquele era seu momento favorito, quando todos os convidados indesejáveis já tinham ido embora e ficavam apenas as pessoas que realmente queriam comemorar a data. Comiam mais uma rodada de salgadinhos e mais um pedaço de bolo, enquanto riam de lembranças inconvenientes, despreocupados com os ponteiros no relógio.
— Eu não acredito. — Duda balançou a cabeça indignada, ao fim da noite, apontando a mala que havia separado para a viagem. — Olha só o tamanho disso!
— O que tem? — perguntou, enchendo o colchão inflável que já era velho conhecido da melhor amiga.
! — Duda disse alto, esquecendo o horário, as mãos na cintura. — Essa mala é minúscula! Eu levo uma mala maior do que essa para passar o feriado na praia e você está indo para Itália por um ano. UM ANO! 365 dias!
— Por isso mesmo, eu estou levando só o necessário. — deu de ombros. — Qualquer coisa a mais que eu precisar, eu posso comprar lá. E a mala nem é tão pequena assim, Duda. Você que é exagerada.
— Mas é justamente porque você vai comprar um monte de coisas lá que você precisa de uma mala grande! Por mim você podia levar a mala até vazia, compra um armário todo novo. Mas você pretende trazer essas coisas de volta COMO?
— Se eu precisar, eu compro uma mala maior também. — respondeu, pragmática.
Duda suspirou, deixando o corpo cair na cama da amiga em sinal de derrota. Conhecia a melhor amiga bem demais. provavelmente voltaria com uma mala ainda menor do que a que estava levando.
— Tá. Mas, por favor, — Duda endireitou-se, juntando as mãos em oração. — por Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil e de todas as estudantes introvertidas e sistemáticas, me promete que você vai aproveitar essa viagem.
— Prometo. — respondeu, forrando o colchão e pegando o travesseiro que Duda sempre usava.
— Eu estou falando sério, . — Duda se levantou e segurou os ombros da melhor amiga, forçando-a a prestar atenção. — Essa é uma oportunidade única. Você vai para Itália! Por favor, não me vai passar o ano inteiro indo da faculdade para casa e de casa para a faculdade.
— Eu não sou tão antissocial assim, Duda.
— Você foi a UMA festa em toda a graduação e só porque eu te arrastei!
— Desculpa se eu não vejo graça em estar cercada por um monte de desconhecidos bêbados. Ou seja, o pior tipo de desconhecido e o pior tipo de bêbado, aquele é os dois em um só. Ainda mais sendo que, se eu quiser beber e dançar, eu posso fazer isso na segurança e no conforto da minha casa, só com gente de quem eu gosto.
— Justo. Mas me promete que você vai sair, conhecer pessoas e fazer amizades. E que vai ficar com pelo menos um italiano! — Duda juntou as mãos em prece outra vez.
— Prometo que eu vou sair, conhecer pessoas e fazer amizades.
— E que ficar com pelos menos um italiano. — Duda repetiu devagar, como se falasse com uma criança.
— A última coisa de que eu preciso é de um homem atrapalhando a minha vida.
— Justo também. Então promete que você vai ficar com pelo menos uma italiana. — Duda sorriu e riu alto.
— Não prometo nada. Você sabe que isso de ficar sem se apegar não é comigo e eu realmente não preciso de rolo nenhum no momento.
— Você é sensata demais. — Duda reclamou, emburrada. — Não sei como somos melhores amigas.
Duda abriu o armário, resmungando que não confiava na amiga para arrumar a própria mala, e sorriu. Também não entendia muito bem como duas pessoas tão diferentes podiam ser melhores amigas. Ela, prática e objetiva, analisava mil vezes cada escolha antes de tomar uma decisão. Duda se jogava sem olhar para trás, acreditava em ‘deixar acontecer’ e afirmava que, quando algo era para ser, simplesmente seria. Uma formada em literatura clássica e a outra em matemática aplicada.
— Duda, eu não vou precisar desse vestido. — comentou, quando a amiga colocou na mala um vestido preto com detalhes em dourado. Tinha usado aquele vestido uma única vez. Era lindo; um pouco acima dos joelhos, fechado na frente e aberto nas costas. Tinha quase certeza de que não cabia mais e plena certeza de que não precisaria dele durante a viagem.
— Você fica linda nesse vestido e você vai levar, sim!
— Ele nem deve me servir.
— Então, veste. Se não servir, você não leva.
olhou para o vestido, em seguida para o pijama quentinho e confortável que vestia. Lembrou-se da luta que era passar os braços e cabeça pelo tecido apertado e depois fechar o zíper. Quase tinha distendido o ombro da última (e única) vez.
— Pode colocar na mala, deve servir ainda. — rendeu-se.
Para sua surpresa, Duda – que ainda segurava o vestido – jogou os braços ao redor de seu corpo em um abraço apertado. Passado o susto, fechou os braços ao redor da melhor amiga.
— Vou sentir saudades. — disse Duda, sem quebrar o abraço, a voz embargada.
As palavras se atrelaram às lágrimas e, , não querendo transformar a despedida em choro, não vociferou o sentimento forte que pressionava seu peito; mas apertou o abraço e Duda compreendeu a resposta.
📚💙⚽
O trajeto até o aeroporto foi tranquilo. Uma bela noite de sexta-feira se desenhava no céu de São Paulo e, passado o horário de pico, o trânsito fluía com agilidade. Os pais conversavam, puxando assunto em uma tentativa de espantar ou de disfarçar a mistura de sensações em ver a filha viajar para tão longe por tanto tempo. ouvia as recomendações da mãe (passear bastante, tirar muitas fotos, não pular nenhuma refeição – principalmente o café) e concordava com todas elas, sorrindo para não deixar transparecer o nervosismo que dominava seu corpo. As mãos estavam mais geladas do que de costume e um bolo estranho havia se instalado em seu estômago. Queria ir, mas também queria ficar. Odiava despedidas mais do que odiava aniversários. Era impossível prever quando uma despedida seria a última e, por isso, odiava todas elas.
A conversa tranquila deu lugar a um silêncio desajeitado, enquanto caminhavam até a área de embarques internacionais. Sentaram-se em um pequeno café, aproveitando cada um dos segundos que ainda tinham juntos. E, quando não dava mais para adiar a despedida, abraçaram-se com força, segurando as lágrimas e tentando não pensar em tudo o que poderia acontecer em um ano.
— Avisa assim que pousar. — a mãe disse, ajeitando um cacho rebelde na cabeleira castanha da filha.
— Pode deixar. — concordou, beijando a bochecha da mãe e então do pai.
— Até daqui a pouco. — o pai falou e ela riu.
— Até daqui a pouco.
Atravessou a fila de embargue e olhou para trás, acenando para os pais, antes de seguir. A mala de rodinhas firme em uma mão, o passaporte e a passagem firmes na outra, a mochila bem segurança nas costas. Não era uma última despedida. Não era para sempre. Era só um ano. E um ano passava rápido. Às vezes, rápido demais.
Não precisou esperar muito para embarcar. Encontrou seu lugar sem dificuldades e colocou a mala de rodinhas no suporte acima de seu acento. Ajeitou a mochila aos seus pés e se sentou. Começava a suspeitar de que a viagem era um erro. Podia muito bem cursar o mestrado em São Paulo. Ficar era seguro. Já conhecia a faculdade, os professores e até os colegas de classe. Sabia o horário que o ônibus saía do terminal e o horário em que chegava à Cidade Universitária.
Mas não. Decidira – e nem conseguia mais se lembrar por quê – estudar do outro lado do oceano. Em uma cidade onde não conhecia nada e nem ninguém. Agora, listava todas as coisas que poderiam dar errado; todas as coisas que, focada em ser aceita no programa e conseguir uma bolsa, negligenciara. Assistira a Busca Implacável vezes o bastante para saber que viajar sozinha para um lugar desconhecido era uma péssima ideia. O pior era que não tinha mais volta. Estava dentro do avião. Respirou fundo e fechou os olhos, o estômago esfriando conforme a aeronave se inclinava, subindo. Não tinha mais volta.
📚💙⚽
As onze horas de viagem passaram entre cochilos e filmes – uma comédia com Adam Sandler e uma animação que parecia feita mais para adultos do que para crianças. Aos poucos, o avião, todo escuro para que os passageiros pudessem dormir, foi-se iluminando a cada janela aberta. Quando o piloto anunciou o pouso, o relógio na tela em frente ao assento de informava que eram duas horas da tarde na Itália. Aproveitou a espera após o pouso, enquanto os passageiros se acumulavam no corredor, para repassar o itinerário. Estava em Roma, a primeira parte da viagem (a mais longa, porém, a mais simples também) estava completa. O próximo passo era pegar o trem até o centro da cidade.
O nervosismo, esquecido ao longo das horas de voo, voltou ao deixar a aeronave. As vozes na multidão falavam uma língua ritmada, diferente da sua. Entendia as palavras soltas das conversas que ouvia pelo caminho e a percepção de que aquela não era sua língua materna tornou tudo mais real. Estava na Itália. Parou por um segundo, aceitando o fato e se ajustando a nova realidade, então caminhou até os guichês da imigração.
O homem carrancudo fazia perguntas e ela lutava para dizer as respostas; os anos de estudo e a prova de proficiência apagados de seu cérebro pela tensão da entrevista. Respondia em algum idioma que não era nem português nem italiano, mas qualquer coisa perdida no meio do caminho entre as duas línguas. Suspirou aliviada quando o homem a liberou e saiu a passos rápidos dali.
Não precisou esperar as bagagens, pois as únicas coisas que trazia já estavam consigo. Parou em uma lanchonete dentro do aeroporto, comprou um lanche e se sentou. Mandou uma mensagem para os pais, avisando que havia chegado a Roma e pegou o caderno que trazia na mochila com todas as anotações de que precisava. A fome e a vontade de chegar logo naquela que seria sua casa pelo próximo ano fizeram com que engolisse a comida em poucos minutos. Estava cansada da viagem e perdida no mundo. Deslocada em um lugar que era apenas uma parada a meio caminho de onde deveria estar.
Com a mochila nas costas e a mala na mão, subiu ao andar superior do aeroporto e seguiu as placas que indicavam o terminal de trem. O italiano veio mais fácil ao falar com a moça no guichê e, quando a voz no alto-falante anunciou a chegada do Leonardo Express, embarcou em direção ao centro de Roma. Em 30 minutos estava na estação Termini. Sem perder tempo e focada em duas coisas apenas – não se perder em um país desconhecido e não ser sequestrada por uma gangue internacional – caminhou até o próximo guichê. Não havia nenhum trem que fizesse o trajeto direto, mas, por sorte, ainda havia lugar no trem que partiria às 15h08 e que requisitaria apenas uma baldeação.
O coração batia incerto e os olhos atentos admiravam a paisagem pela janela ao deixar Roma para trás. Estava tão preocupada em não se perder, que sequer lamentou não poder conhecer a cidade. Queria desesperadamente chegar ao apartamento onde iria morar, precisava sentir que estava no lugar certo. Que estava tudo bem. Tomou um longo gole da garrafinha de água, limpando o suor que ameaçava escorrer de seu rosto. Era o meio do verão e a temperatura passava dos 39º, somado a isso, o desassossego fazia com que ela suasse além do normal.
O relógio na estação marcava 16h20 quando o trem fez sua única baldeação, na comune de Caserta. pegou suas coisas e, após perguntar para o segurança na plataforma, mudou de trem, pegando aquele que a deixaria em seu destino final. Sentou-se, soltando o ar dos pulmões em um semi-alívio; embora ainda não estivesse totalmente tranquila, aquela era a última parte da jornada.
O trem fazia paradas e ela olhava os nomes das estações, conferindo os nomes no pequeno papel em que anotara o itinerário da viagem, com medo de descobrir (tarde demais) que pegara o trem errado. Quando a voz no alto-falante finalmente anunciou sua parada, às 17h30, sentiu o corpo começar a relaxar. Estava quase lá.
Seguiu as placas e o fluxo até a saída da estação Piazza Amedeo e, ao sair para a rua, avistou o canteiro e a única árvore que formavam a pequena praça. Em volta, alguns prédios e lojas. Uma padaria, um restaurante, uma vendinha. As pessoas caminhavam tranquilas, o sol ainda alto no céu. A atmosfera agradável acolheu seu corpo cansado e, pela primeira vez desde que embarca no avião, sorriu.
Caminhou devagar, a mala de rodinhas pulando por entre o chão de pedra. Era ali que iria morar pelo próximo ano. Admirou a formosa árvore ao centro da praça, a mesma árvore que veria a cada vez que olhasse pela janela ou que saísse de casa. Já não estava tão perdida no mundo, à mercê do caminho. Havia chegado ao seu destino.
Observou os prédios, procurando pelo Palazzo Cottrau Ricciardi. Havia procurado fotos na internet e foi fácil reconhecê-lo. Ficava a poucos passos da estação, no outro extremo da praça. Não esperava, no entanto, que fosse tão bonito. Esperava encontrar um prédio mais envelhecido do que o das imagens, abatido e descuidado pelo tempo, mas lá estava ele. Sua construção tão bela quanto nas fotos. A pintura branca impecável, assim como seus imponentes sete andares e as charmosas varandas. Uma construção antiga, mas longe de descuidada.
Enquanto se aproximava do prédio, pensou na professora Bianchi, que havia se mostrado praticamente uma fada madrinha, se elas existissem na vida real. Em um encaixe perfeito de acontecimentos, o pai da professora, no auge de seus 89 anos, decidira mudar de casa. Planejavam vender o imóvel, mas, em vez disso, alugaram o apartamento para ela pelo próximo ano. E, a julgar pela localização, haviam lhe alugado por um preço muito abaixo que de fato valia.
Fazendo uma nota mental de agradecer a professora mais uma vez, passou pelo estacionamento que antecedia a entrada e por um pequeno pátio, onde mais carros estavam estacionados. Subiu os poucos degraus até a porta principal, tirou a mochila das costas e pegou as chaves que a professora Bianchi havia lhe entregado. Respirou fundo e colocou uma delas na fechadura. Esperava que alguma coisa desse errado, mas, ao girar a chave no trinco, um leve clic soou e a porta se destrancou.
entrou e, fechando a porta atrás de si, com o coração disparado, admirou o hall. O lugar por onde passaria todos os dias. Era simples, uma mesa antiga de madeira encostada à parede e um vaso com um cacto grande ao seu lado. Empurrou a alça da mala de rodinhas para baixo, segurou-a com força e subiu as escadas. Quatro lances. Dirigiu-se à porta que trazia o número 42 acima do olho mágico e colocou a mala no chão outra vez.
O coração batia acelerado e com força contra seu peito, quando pegou o chaveiro novamente. Usou a outra chave, a menor. Alguns giros na fechadura e a porta de sua nova casa se abriu. Não entrou de imediato. Observou o apartamento da soleira por um momento. Os móveis do Sr. Bianchi ainda mobiliavam o local, a cortina e as paredes em um tom bege e antiquado deixavam claro que aquela casa não era dela. Estaria ali um tempo, mas aquela ainda era a casa de outra pessoa. Entrou, um pouco incerta. Uma introduza no lar de outro alguém. Estava prestes a fechar a porta, quando uma mulher, saindo do apartamento em frente ao seu, apareceu em seu campo de visão.
— Oi! — a moça falou, o cabelo escuro na altura dos ombros, os olhos entre o verde e o castanho se destacavam em seu rosto. Era alta, esguia e tinha a pele em um tom oliva-claro. — Você é a nova moradora?
concordou, ajeitando o cabelo que escapava do rabo de cavalo. Estava viajando há 14 horas. Tinha pegado um avião e três trens. Estava suada e descabelada. Queria causar uma boa impressão, mas era um caso perdido.
— Giulia Guicciardini. — A italiana se aproximou, estendendo a mão para cumprimentá-la.
. — acrescentou o sobrenome, da mesma forma que a desconhecida havia feito, aceitando o cumprimento.
— Foi uma pena o Sr. Bianchi ter se mudado, mas, para ser sincera, não sei como ele ainda conseguia subir essas escadas. Vou sentir falta dele, depois de um tempo você acaba se afeiçoando à rabugice. Mas vai ser bom ter uma vizinha da minha idade, para variar!
concordou, sem saber o que dizer.
Um silêncio estranho pairou entre as duas. A italiana a olhava com uma expressão indecifrável e, quando ela ergueu minimamente uma das sobrancelhas, falou:
— Desculpa, eu acabei de chegar, ainda estou um pouco perdida. A viagem foi bem longa.
— Você não é de Nápoles. — A vizinha franziu o cenho, analisando com olhos mais minuciosos após a nova informação.
— Ahn. Não. Na verdade eu não sou nem italiana, é a minha primeira vez aqui.
— Hum. — A italiana ainda tinha o cenho franzido, mas logo sua expressão mudou para uma mais simpática. — Então, seja bem-vinda! Tenho certeza de que Nápoles vai roubar seu coração.
sorriu, sem jeito.
O silêncio desajeitado voltou e se despediu, fechando a porta atrás de si. Tirou a mochila dos ombros e, enfim, permitiu-se relaxar. Tinha dado tudo certo. Estava em Nápoles. Suspirou, estava em Nápoles. Sozinha. Em um lugar desconhecido, sem ninguém a quem recorrer caso precisasse. Tirou os sapatos, soltou os cabelos e caminhou pela casa à procura do banheiro.
Precisava de um banho. Precisava de um monte de coisas, mas primeiro precisava de um banho. Não se atentou à máquina de lavar, nem à enorme janela; ambas no banheiro. Tirou a roupa e subiu na banheira, ligando a ducha. Sequer se incomodou com a água gelada que se chocou contra sua pele, pelo contrário. Fechou os olhos, apreciando a sensação da água que molhava seus cabelos e escorria por seu corpo. O foco total em não se perder, em chegar à casa sã e salva, havia bloqueado o cansaço durante o percurso, mas agora a exaustão dava as caras. Os músculos doíam e os pés ardiam.
Não havia volta. Estava em Nápoles e só lhe restavam duas coisas a fazer: torcer para não acabar vítima de uma gangue de tráfico de órgãos, ou seja, para que as palavras da vizinha fossem apenas figurativas; e cumprir a promessa que fizera à mãe e à melhor amiga. Aproveitar a viagem.
Estava em Nápoles, afinal.

¹ ’nce steva ’na vota – Era uma vez, no dialeto napolitano.


Capítulo 2

O banho relaxou seu corpo e acalmou sua mente. Mais tranquila, vestiu uma roupa confortável – nada de calça jeans – e mandou uma mensagem para a mãe, avisando que havia chegado em casa e que estava bem. Pegou a mala e a mochila, que ainda estavam largadas perto da porta de entrada, e rumou para o quarto. A cama era de casal, com uma madeira escura e desenhada, e o colchão parecia novo. Ainda assim, ela fechou os olhos em uma careta. Não tinha lençol. Nem fronhas, nem cobertor.
Olhou o horário no celular, fazendo as contas do fuso e na mesma hora ajustando o relógio do aparelho. Sete horas da noite de um sábado. Lá fora o céu seguia claro, mas, mesmo que alguma loja ainda estive aberta (e ela não fazia ideia se estaria, porque não fazia ideia de qual era o horário de funcionamento das coisas em Nápoles aos fins de semana), não saberia aonde ir. E tinha acabado de chegar, depois uma viagem enorme, não queria ter que sair de novo. Deu de ombros, dormiria sem roupa de cama. Não era o fim do mundo. Na segunda-feira daria um jeito de descobrir onde comprar aquele tipo de coisa. Talvez comprasse um travesseiro novo também, o que estava sobre a cama já tinha visto dias melhores.
Girou o corpo, observando o quarto. Diferente da sala, as paredes tinham um tom de azul discreto e agradável. Tranquilo. O armário era feito da mesma madeira que a cama, com o mesmo desenho que enfeitava a cabeceira entalhado nas portas. Um traço delicado, que se curvava em algo semelhante a pequenas flores. Abriu o armário, descobrindo um grande espelho do lado de dentro de uma das portas. Quase não reconheceu a versão de si mesma refletida ali, os ombros caídos e os olhos exaustos.
Pensou em desfazer a mala e organizar as roupas, mas logo desistiu. O corpo pedia por descanso, e ela só não se jogou na cama, porque a fome falou mais alto. Caminhou de volta à cozinha e foi tomada por uma vontade de chorar ao se dar conta de que não teria comida. Abriu a geladeira apenas para descobrir que o eletrodoméstico estava desligado e vazio. Deixou a cabeça cair para trás em frustração e já voltava ao quarto para trocar de roupa e procurar algum lugar onde comer, quando batidas à porta soaram pelo apartamento silencioso, sobressaltando-a. Com passos cheios de incerteza, foi até a sala e, pelo olho mágico, viu a vizinha de mais cedo no corredor.
— Eu de novo. — a moça disse simpática, quando abriu a porta. — É só que a casa está desocupada há alguns meses e você acabou de chegar, então eu imaginei que estaria sem nada para preparar o jantar. Eu fiz Spaghetti alla Nerano e tem suficiente para nós duas... O que você acha?
Giulia gesticulou para o apartamento atrás de si, a porta ainda aberta. hesitou por um instante, então sorriu.
— Você acaba de salvar a minha vida! — disse, seguindo a vizinha até o apartamento que era um espelho do seu, exceto pelas cores.
O apartamento de Giulia era cheio delas. O sofá em um tom de amarelo mostarda, a cortina estampada em flores que misturavam laranja, rosa e verde. A mesinha de centro com detalhes em azul. E fotografias, muitas fotografias. Nas paredes, na porta da geladeira, em porta-retratos nas estantes.
— Imagina, é só um spaghetti. — Giulia encolheu os ombros, modesta. — Fica à vontade.
agradeceu e se sentou à pequena mesa entre a sala e a cozinha, servindo-se do belo spaghetti com abobrinhas fritas e provolone del Monaco. Giulia abriu uma garrafa de vinho e encheu duas taças, depois se sentou de frente para e serviu seu próprio prato.
— Está uma delícia! — suspirou após a primeira garfada, agradecendo mentalmente a existência e a caridade da vizinha. Talvez Giulia fizesse parte de uma gangue internacional de tráfico de órgãos, mas, naquele momento, não se importava.
— Não é igual ao da minha mãe, mas é melhor do que o do meu irmão. — Giulia riu. — Me conta, de onde você é? Eu não consegui desvendar o seu sotaque.
— Brasil. — respondeu e, antes que a vizinha deduzisse que era do Rio, acrescentou: — São Paulo.
Giulia franziu o cenho, mas durou apenas um segundo.
— E o que te traz a essas terras partenopéias¹?
— Eu vim fazer o mestrado.
Giulia fazia perguntas, mas não de um jeito invasivo. De um jeito interessado. E, mesmo que não lhe perguntasse tantas coisas (ocupada que estava em devorar a comida no prato), a italiana compartilhava alguns fatos sobre si também. Ao fim do jantar, sabia que a vizinha tinha um irmão mais novo e que estava noiva. Luca era o nome do sortudo, os dois tinham se conhecido no último ano da faculdade e estavam juntos desde então.
Depois do jantar, se ofereceu para lavar a louça e, com um sorriso divertido, Giulia aceitou, dizendo que odiava lavar louça mais do que tudo. Enquanto lavava, Giulia secava e lhe explicava algumas coisas sobre o bairro. Onde ficava o quê (havia um mercado na rua ao lado, a poucos metros do apartamento, não muito grande, mas completo no que se tratava do básico), como funcionava a coleta seletiva e os dias em que passava o caminhão de lixo.
— Eu já fiz as compras do mês, mas acabei esquecendo algumas coisas. — Giulia comentou, ao acompanhar até a porta. — Amanhã é domingo, então eu não posso... Mas na segunda, depois do trabalho, eu vou ao supermercado comprar o que faltou e te dou uma carona, se você quiser. Assim você não precisa pegar um taxi.
— Se não for te incomodar, vai ser ótimo. — respondeu, um alívio tomando seu peito. Talvez não estivesse totalmente sozinha em Nápoles, afinal. Talvez tivesse alguém a quem pedir ajuda caso alguma coisa desse errado.
— Então tá! Obrigada por lavar a louça, vou te chamar para jantar mais vezes, assim eu me livro sempre.
— Eu é que agradeço. — falou, mas as quatro palavras não conseguiam expressar o tamanho da gratidão que sentia. — De verdade.
O sorriso educado no rosto de Giulia se transformou em um sorriso maior, sincero.
destrancou apartamento 42 e, antes de entrar, acenou um tchau para a nova vizinha – que, se não estivesse interessada em nenhum de seus órgãos, só podia ser algum tipo de ser celestial habitando a Terra.
Escovou os dentes e então se deixou cair sobre a cama. Não tinha cobertas, mas, graças ao calor quase insuportável, não precisava delas. O colchão abraçou seu corpo, e os músculos tensos enfim tiveram permissão para relaxar. Estava tudo bem. A luz dourada do sol que se ponha ultrapassava a cortina e coloria o quarto em um tom calmo. Estava em Nápoles. O toque macio do colchão em sua pele provava que era mesmo real.
Não seria fácil, mas esperava acostumar-se à nova casa, criar uma rotina. Esperava aos poucos sentir-se confortável e, quem sabe, até se afeiçoar à cidade. Não tinha grandes expectativas, mas gostaria de, no futuro, olhar para os dias que vivera ali sem arrependimentos. Gostaria de levar consigo apenas boas lembranças do lugar que, independente do que acontecesse, seria para sempre uma parte de sua história.
E, assim, com algo semelhante a um desejo surgindo em seu coração, adormeceu. Sua primeira noite na cidade que seria seu lar pelo próximo ano. A primeira de 365.
📚💙⚽

se espreguiçou, os raios de sol invadiam o quarto pelas brechas da cortina e atingiam seus olhos. Franzindo o rosto pela claridade, ela pegou o celular na mesinha ao lado da cama. Queria olhar as horas, mas o aparelho estava sem bateria. Buscou na mochila o carregador e o adaptador universal que levara consigo, mas revirou os olhos ao perceber que, apesar de a tomada ser diferente, não precisaria do adaptador. Claro. A única coisa que ela tinha se lembrado de levar e, no fim das contas, nem iria precisar.
Deixou o celular carregando, trocou de roupa, pegou as chaves e saiu de casa. Desceu as escadas com a impressão de estar invadido o espaço privado de outras pessoas. Não se sentia uma moradora. Não estava perdida no mundo, mas também não tinha encontrado seu lugar nele. Era uma sensação peculiar, aquela. Afinal, não estava cercada por estranhos em um lugar desconhecido, mas o contrário. Era ela a estranha em um lugar familiar a todos os outros.
Fazia uma bela manhã de domingo e, mesmo sendo uma estranha ali, nada naquele cantinho de Nápoles lhe transmitia hostilidade. A árvore na praça, cheia e verde, sorria-lhe. A atmosfera caseira a acolhia, e o dia ensolarado que se desenhava lhe desejava boas-vindas. A Piazza parecia um pequeno refúgio do mundo lá fora. Com os passos mais leves, sentiu nascer dentro de si a possibilidade de que aquele cantinho em Nápoles se transformasse no seu cantinho em Nápoles.
O mercado ficava a alguns passos do prédio e, por sorte, já estava aberto. A lista do que precisava era enorme, mas ela optou apenas pelos ingredientes necessários para algumas refeições simples. As sacolas tornaram a subida até o apartamento mais natural. Carregar as compras escadas acima era algo que apenas moradores faziam e era o que ela estava fazendo. Porque ela era uma moradora. Morava ali agora. E pelo próximo ano inteiro.
Era uma moradora, repetiu para si mesma a cada lance de escadas, e, ao chegar em frente ao apartamento 42, seus passos não eram mais tão hesitantes. Girou a chave na fechadura com a postura ereta e a confiança de quem chamava aquele lugar de casa. Não de lar, ainda não. Duvidava de que algum dia chamaria a apartamento de lar, mas conseguiria vê-lo como sua casa.
Deixou as compras sobre o balcão da cozinha e, antes de abrir as gavetas e o restante dos armários, murmurou uma prece a qualquer divindade disposta a atendê-la. Precisava de uma panela. Uma única panela era tudo o que ela pedida. E que, por favor, não fosse uma frigideira. Fechou os olhos com força, tentando conjurar alguma magia antiga, então abriu as portas do armário sobre a pia. Deparou-se com algo semelhante a um escorredor de pratos na primeira prateleira, mas, ao erguer os olhos, um sorriso tomou seu rosto. Duas panelas. DUAS! E nenhuma delas era uma frigideira.
Abriu o armário ao lado e depois as gavetas, todos vazios. Não tinha pratos nem talheres. Mas tudo bem! Não precisa de pratos de imediato, podia comer na panela mesmo. Nem de copos, beberia a água direto da garrafa, mas... Precisava ao menos de um garfo. Não naquele exato momento, tinha tido o bom senso de comprar pão de forma e queijo já fatiado. Poderia comer um lanche no café da manhã sem muitos problemas. Mas precisaria de um garfo para o almoço... Focou no café; na hora do almoço decidiria o que fazer.
Enquanto comia seu lanche, fez uma lista de todas as coisas que precisaria comprar. Pratos, copos, talheres. Roupa de cama, cobertor, travesseiro. Frigideira. Um chip para o celular. Vassoura, pano de chão, pano de prato. Toalha de mesa. Suspirou, frustrada pelo tanto de coisas que haviam lhe passado desapercebidas.
Folheou a agenda, observando as anotações que fizera antes da viagem, e se surpreendeu ao descobrir que seu eu-do-passado – sensato e racional – havia antecipado todos aqueles percalços. Havia, entre as páginas, uma lista idêntica à que ela escrevia segundos antes. Não havia sido descuidada ou relaxada, mas, aterrorizada com a possibilidade de se perder em um país estrangeiro e exausta depois de 14 horas de viagem, havia se esquecido dos detalhes, do planejamento. Havia se esquecido dos obstáculos iniciais (todo a burocracia que precedera a viagem) e de que havia superado eles também. Olhando o plano, sentiu-se menos despreparada. Menos como uma bagunça total e mais como ela mesma.
Não precisava se desesperar diante de tudo o que lhe faltava no momento. Havia antecipado aquilo. Não era tão ruim. Só precisava seguir o plano. Havia calculado quanto gastaria em sua primeira grande compra – na época, tinha olhado sites de supermercados italianos para buscar uma média de preços – e tinha até mesmo incluído o valor para o táxi. Antecipara tudo aquilo. O único elemento que não havia antecipado era Giulia. Não contava com uma vizinha gentil a ponto de lhe oferecer um jantar e uma carona ao mercado. Sorriu. O fator humano era o único completamente impossível de prever e o único que fugia ao seu alcance planejar.
Não esperava uma vizinha como Giulia, mas estava bastante grata por ela. Torcia para que ela fosse mesmo gentil e amigável, para que não se revelasse o oposto ao longo ano. Com vizinhos, era difícil dizer. Alguns pareciam agradáveis e educados à primeira vista e três meses depois estavam ouvindo músicas de qualidade duvidosa às três da madrugada em plena terça-feira.
terminava de guardar as compras nos armários, quando percebeu o som distante da porta à frente sendo aberta. Correu, quase tropeçando nos próprios pés, mas chegou no corredor a tempo de encontrar Giulia.
— Oi! Desculpa. — disse, sem jeito. — Eu sei que você está de saída, mas será que você poderia me emprestar um garfo?
— Um garfo? Claro.
Giulia deu o primeiro passo para voltar ao seu apartamento e parou. Pareceu pensar por uns dois segundos, então entrou. Deixou a porta aberta e, ao sair outra vez, trazia mais do que um garfo. Trazia um prato e, sobre ele, um copo, um garfo, uma faca e uma colher.
— Aqui. — Giulia lhe estendeu os utensílios.
— Eu nem sei como te agradecer. — falou, o coração batendo rápido.
— Não é nada. — a vizinha disse, movendo as mãos em um gesto despreocupado. — Deve ser difícil mudar assim.
— É, confesso que eu estou completamente perdida. — riu.
— Qualquer coisa pode me chamar. Sem problemas. — A italiana fechou o próprio apartamento e se despediu. — Bom domingo.
— Para você também.
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passou o restante da manhã desfazendo as malas e arrumando as roupas no armário. Precisava comprar cabides, mas conseguiu se organizar bem sem eles, não trouxera tantas roupas. Guardou a sapatilha junto com o tênis que usara na viagem e riu ao descobrir que Duda tinha dado um jeito de enfiar na mala um par de sandálias de salto alto.
Fechou a mala vazia e a escondeu embaixo da cama. Depois, tratou de espalhar alguns de seus pertences pela casa, na tentativa de torná-la mais sua. Colocou o notebook na mesinha de centro e os itens da nécessaire no banheiro. Deixou o casaco meia-estação sobre o sofá e o amarradinho de cabelo sobre o móvel da TV. Guardou o carregador do computador na gaveta da escrivaninha, que ficava próxima à janela da sala; em cima da mesinha de cabeceira, deixou a agenda e a caneta que sempre usava. Não era muito, a estante e as prateleiras pela casa ainda estavam vazias, mas era alguma coisa. Era um começo.
Para o almoço, fez um macarrão com molho pronto, meio desajeitada na cozinha que ainda não conhecia direito. Ligou a televisão na tomada e se sentou no sofá, feliz com o prato, o copo e os talheres que Giulia havia lhe emprestado. A imagem não pegava muito bem, mas não se importou. Não queria assistir à TV, queria apenas preencher o ambiente com um som que a fizesse se sentir menos sozinha. Queria apenas ter um vislumbre de como seria morar ali pelos próximos meses; sentada no sofá, comendo enquanto assistia à televisão. Uma ação cotidiana. E foi isso o que fez pelo resto da tarde, procurou descobrir como seria morar ali.
Sentou-se em todos os lugares do sofá, constatando que era ótimo para cochilos em fins de semana preguiçosos e para cair no sono vendo um filme. Foi até a escrivaninha e fingiu escrever sob a luz que entrava da janela. Caminhou pela casa procurando todas as tomadas, e descobriu como usar a água quente no chuveiro. Cogitou mudar algum móvel de lugar, mas gostava deles como estavam.
Por fim, pegou mais uma vez a agenda onde anotava suas infinitas listas e se organizou para o dia seguinte. Quando terminou, ainda estava claro lá fora. Precisava acostumar-se com o pôr do sol depois das oito horas da noite. Pensou em descer e caminhar pelas proximidades, mas desistiu. Em vez disso, aconchegou-se na pequena varanda e assistiu ao céu ganhar um tom alaranjado, enquanto a noite enfim tomava conta do horizonte.
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Batidas à porta acordaram na manhã de segunda-feira. No breve intervalo entre despertar do sono e abrir os olhos, ela achou que estava no Brasil. Precisou de alguns segundos para se localizar em meio ao quarto tão impessoal. Caminhou descalça até a sala, coçando os olhos e amarrando o cabelo em um coque. Não olhou o olho mágico porque só conhecia uma pessoa em Nápoles.
— Bom dia! — a vizinha disse animada. — Desculpa te acordar tão cedo. Eu só queria confirmar se você vai querer a carona até o supermercado mais tarde.
— Se não for incomodar, eu quero sim.
— Eu chego do trabalho por volta de seis e meia. Tudo bem se a gente for umas oito? Assim dá tempo de jantarmos antes de ir.
— Por mim está ótimo. — sorriu.
— Perfeito. Até mais tarde, então. — Giulia disse, seguindo para as escadas. Antes de chegar aos degraus, voltou. — Eu ia te falar ontem, mas esquecei. Se você precisar, pode usar a minha internet. O meu Wi-Fi é o GiuGuic e a senha é 86878990.
— Eu mal me mudei e já estou com uma dívida enorme com você. — brincou, mas era como realmente se sentia.
— Que nada. — Giulia balançou a cabeça. — É o tipo de coisa que eu faria por qualquer amigo.
— Mas eu sou uma desconhecida.
— É assim que toda amizade começa, não é? Com dois desconhecidos. — Giulia sorriu. — Vejo você mais tarde, .
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Uma alegria pequena se instalou em seu peito. Discreta, mas presente. Uma fagulha que surgia. A sensação de que aquele era um começo, não um item a riscar em uma lista de etapas a cumprir. Vivia focada no futuro, no objetivo à frente. O mestrado em Nápoles era o degrau que a levaria até o doutorado, que, por sua vez, era o degrau que a levaria à carreira acadêmica. Era sempre assim, sempre focada na etapa a cumprir e na meta a alcançar. Mas, enquanto ligava o chuveiro e se preparava para o dia, nasceu em uma vontade leve e despretensiosa de aproveitar cada instante. De apreciar a jornada sem se preocupar obsessivamente com o passo seguinte. Não queria olhar para trás e perceber que, focada nos estudos, deixara de aproveitar todo o resto.
Hic et nunc². As palavras que ouvira tantas vezes ao longo da graduação começavam a ganhar vida. Aqui e agora. Os dois estendiam-se diante dela em uma infinidade de possibilidades. Lugares a conhecer, coisas a aprender, amizades a construir. Em um novo aqui, que começava agora.
Animada e determinada, vestiu uma roupa e saiu. Estava em Nápoles havia dois dias e ainda não havia visto o mar. Nem o Vesúvio! Foi só quando chegou à praça que se deu conta de que não sabia como chegar ao mar. Riu de si mesma – um pouco de planejamento ainda era essencial –, mas não se deixou abalar. A alegria sem motivo permanecia em seu peito, florescendo enquanto caminhava pela praça. Sorriu, sentando em uma das mesinhas ao ar livre de uma panetteria, e tomou o seu café da manhã.
Depois, com um único plano em mente – conhecer o bairro onde iria morar – tomou uma das ruas que convergiam na Piazza Amedeo. Caminhou tranquila, mas atenta. Seguiu pela Via Vittoria Colonna, admirando os prédios largos e com poucos andares, varandas charmosas em cada uma das janelas. Viu lojas de roupas, de quadros, de óculos. Um escadão à direita e uma viela à esquerda. Salão de beleza. Igreja. Flores e buquês vendidos na calçada. Mais à frente, o museu Pallazzo delle Arti Napoli. Uma farmácia e lojas que, de repente, ganhavam nomes conhecidos. Boss, Rolex, Louis Vitton. Um novo escadão e então Prada, Mont Le Blanc, Armani. Quando as pernas já pediam descanso, decidiu voltar, fazendo uma nota mental para visitar o museu em breve.
Em casa, depois de um almoço simples, ligou o computador e logou no Wi-Fi de Giulia. Pesquisou os trajetos até a faculdade; as aulas só começariam na segunda semana de setembro, mas precisava entregar alguns documentos e ter certeza de que estava tudo certo com sua matrícula. Anotou os dois caminhos possíveis – de ônibus e de metrô –, o nome das estações e pontos onde descer, e desenhou um pequeno mapa com a parte do trajeto que precisaria fazer a pé.
Pesquisou ainda operadoras para o celular e para a internet, e mandou um e-mail para a professora Bianchi agradecendo por tudo.
Então, lembrou que precisava pesquisar mais um trajeto no computador.
O caminho até o mar.
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Os passos de Giulia eram precisos e determinados. não conhecia o supermercado, então apenas dizia o próximo item na lista e Giulia guiava o carrinho até o local onde estavam os detergentes ou as roupas de cama ou o que quer que fosse. A italiana apontava a marca que a mãe dela dizia ser a melhor, e comprava sem contestar. Giulia ajudou a escolher os pratos (brancos com detalhes singelos nas bordas) e o forro de cama (estampado com flores). Não parecia incomodada, pelo contrário. Falava sem parar, compartilhando com pequenos segredos sobre Nápoles.
E Giulia falava com franqueza sobre tudo; com ela, não havia meias palavras ou respostas dadas apenas por educação. Se queria perguntar algo, perguntava. Se perguntava algo que ela não queria responder, dizia exatamente isso (como quando a brasileira perguntou sobre a influência da Camorra — a máfia napolitana — na cidade). Tal franqueza deixava à vontade para ser igualmente franca, não havia entre as duas o tato exagerado que era costume a recém-conhecidos.
Passaram horas no supermercado e, quando deixaram o local, o carro de Giulia tinha compras saindo pelas janelas. Equilibraram o máximo de sacolas nos braços – para subir e descer as escadas o mínimo de vezes possível – e, depois de três viagens, todas as compras estavam devidamente entregues no quarto andar. se preparava para agradecer à vizinha e se despedir, mas, sem precisar de convite, Giulia entrou no apartamento e começou a organizar as compras na bancada da cozinha. Então, abriu um pacote de batata chips e duas cervejas. Tocaram as garrafas em um brinde e passaram a noite de segunda-feira conversando enquanto guardavam as compras.
Um começo.
Aqui e agora.


¹ partenopéias referente à Partênope, nome original da cidade de Nápoles. Segundo a mitologia grega, a cidade teria sido fundada por sereias (no grego, parthenope). Com a conquista do território pelos Romanos, a cidade passou a se chamar Neapolis (do grego “cidade nova”). Obs: Na antiguidade, sereias não eram mulheres com calda de peixe, mas aves com rosto de mulher.
² hic et nunc – “aqui e agora” em latim. O hic et nunc é uma característica das obras líricas da antiguidade clássica, por retratarem o tempo dos homens; em oposição às obras épicas, que retratam o tempo dos deuses (a eternidade).


Capítulo 3

Um sorriso se formou no rosto de ao ver a cama desarrumada pela manhã. As fronhas, o lençol. Tinha dois de cada agora. O sorriso, no entanto, era também pelos armários cheios na cozinha e pela conversa com Giulia na noite anterior. Após terminaram de arrumar as compras, ainda conversaram por bastante tempo. Haviam encontrado um equilíbrio natural entre falar e ouvir, alternando as ações de forma que compartilhavam sobre si em igual medida. A conversa era introdutória, afinal eram duas pessoas se conhecendo, mas fluía com aquela afinidade que surge sem explicação e que cresce com o tempo. Até que surgiu a grande pergunta: por que Nápoles?
Contar a Giulia o porquê estava ali fez recordar-se daquilo que os anos de planejamento minucioso e de preparação metódica para a viagem a haviam feito esquecer. Nos últimos tempos, o mestrado em Nápoles havia se transformado em uma grande lista de tarefas a cumprir. O encantamento havia se esvanecido em meio ao pragmatismo das provas e da burocracia. Enquanto contava a Giulia sobre a professora Bianchi e a série de coincidências que a levara a Nápoles, no entanto, se lembrou do porquê aquela cidade lhe era especial.
De certa forma, tudo começara ali. A cidade de onde seus bisavôs haviam saído tantos anos antes. Não chegara a conhecê-los e, por muito tempo, não se dera conta do quanto a trajetória deles influenciara sua vida. Via-os apenas como um sobrenome que sobrevivera às décadas. Mas, quando a professora Bianchi mencionou o mestrado em Nápoles, sentiu o laço com o passado. Aquela estranha percepção de que as mesmas pessoas que lhe pareciam tão distantes eram uma peça fundamental em sua história. Sem eles, o presente não poderia ser construído. De repente, Nápoles não era só mais um ponto no mapa. Era um ponto de origem, de partida.
Em um encaixe perfeito, aquela era a oportunidade de estudar os textos milenares que amava — de estar onde seu autor favorito havia estado e vivido —, mas também era uma chance de conhecer um pouco mais sobre as pessoas cujo sobrenome ainda carregava. Não uma busca genealógica, não ligava para documentos e certidões, mas uma forma de se conectar com o passado, de viajar no tempo sem tirar os pés do presente.
— Você está voltando para casa. — Giulia havia dito.
Com a cama forrada, se afastou alguns passos e admirou o quarto. O lençol estampado dava ao cômodo um ar aconchegante, mais seu. Satisfeita, caminhou até a cozinha. Abriu a geladeira, agora cheia, e foi como estar dentro de um filme. Quando as coisas finalmente começavam a dar certo e uma música animada tocava, mostrando a mocinha pronta para conquistar o mundo.
Preparou o café da manhã sem pressa, movendo-se pela cozinha com mais confiança. Sentada à mesa bem-posta, com as suas coisinhas (toalha, xícara, talher) a vida pareceu menos caótica. Não tinha a ilusão — nem a pretensão — de conquistar do mundo, mas aos poucos as coisas iam se encaixando, se acertando, e aquilo era suficiente.
Com a cozinha limpa e organizada, trocou de roupa. Guardou na mochila os papéis que precisava entregar, pegou o mapa improvisado com o trajeto até a faculdade e saiu. Desceu as escadas com passos leves. Na tabaccheria da rua ao lado, comprou um passe único para a semana e, quando estava prestes a seguir até o metrô, parou. Seus olhos hipnotizados pela árvore no centro da praça, os raios de sol refletindo nas folhas como pequenos diamantes em meio ao verde.
pensou em seus versos favoritos da música de Nando Reis. Estranho é pensar que o bairro das Laranjeiras satisfeito sorri, quando chego ali. Tinha certeza de que aquela não era uma laranjeira, mas gostava de encontrar pequenos traços de poesia no dia a dia. E lá estava. A sua laranjeira. Não pelos frutos, mas pela possibilidade de que, algum dia, a árvore também se alegrasse com a sua chegada.
Em vez de seguir até o metrô, decidiu ir de ônibus. O caminho era mais longo, mas o ônibus lhe permitiria ver Nápoles. E queria desesperadamente ver o mar. Pegou o pequeno mapa, localizando-se, e caminhou pela mesma rua do dia anterior, a Via Vittoria Collona. Mais à frente, virou à esquerda e seguiu reto até chegar a uma grande avenida.
À frente, alheio ao trânsito intenso da Riviera di Chiaia, havia o que deduziu ser um parque. Um lugar amplo e aberto, onde as pessoas corriam, caminhavam com cachorros e conversam. O lugar perfeito para aproveitar um dia de folga. A descoberta a encheu de planos para fins de tarde ao ar livre na companhia de um bom livro, mas o trânsito a trouxe de volta à jornada adiante.
Atravessou a avenida e foi até o ponto de ônibus mais próximo, conferindo se o 151 passava por ali. Alguns minutos depois, sentada à janela, seus olhos se fixavam na cidade lá fora. Não conseguia ver a orla, mas uma sensação peculiar e inexplicável de liberdade crescia dentro de si.
Quando o parque ficou para trás, um cruzamento maluco surgiu e, com ele, o horizonte. O mar. Foi breve, o ônibus logo virou em uma rua qualquer, mas bastou para que um arquejo lhe escapasse. Abobalhada com a paisagem, sequer percebeu a escuridão tomar conta de tudo ao entrarem em um túnel.
As palavras de Giulia ecoaram em sua mente. Você está voltando para casa. Sabia que a vizinha só estava sendo simpática, mas, com o coração acelerado e a imagem do horizonte ainda presa a seus olhos, aquelas palavras soavam como uma verdade. Não como se estivesse voltando à própria casa, mas à casa de um amigo distante. De alguém por quem tinha carinho, apesar do pouco contato. Um lar que não era o seu, mas onde seria sempre bem-vinda.
A claridade lhe ofuscou a visão e, quando conseguia focá-la outra vez, o ônibus margeava o porto. Embarcações — grandes e pequenas — dominavam a água, movendo-se na cadência das ondas, mesmo aportados. observava tudo com atenção; os barcos, o trânsito, os prédios, as pessoas. As muitas — muitas — motos. Em um lampejo de sorte, lembrou-se de seu mapa improvisado no momento certo de descer.
Do ponto, já não conseguia ver o mar e, procurando a rua anotada no papel, seguiu por um caminho estreito que a levou até a Via Corso Umberto I e aí ficou fácil encontrar a universidade Federico II. A construção sóbria e imponente era exatamente o que se esperava de um prédio acadêmico europeu.
Em São Paulo, a Cidade Universitária era, como o nome bem dizia, uma cidade em si própria. estava acostumada a cruzar o P1 e entrar em um outro mundo, ainda caótico, mas de um jeito diferente. Árvores e grama preenchiam a distância entre as faculdades, formando um labirinto que ela não chegara a mapear por completo — ainda se perdia quando ia além dos terrenos a que estava acostumada.
O prédio da Faculdade de Letras não era dos mais bonitos nem dos mais conservados; por fora, as paredes de pintura gasta abrigavam reivindicações em tinta spray e faixas indicando o tema da próxima assembleia. Na primavera, a rua Luciano Gualberto ganhava resplendor com o colorido das flores e das pétalas na calçada. Nos dias de chuva, o gramado se transformava em lama e às vezes virava um bolsão de água. Não era raro encontrar um sapo escondido perto da biblioteca nos dias úmidos ou um cachorro cochilando nos dias de sol. Era uma bagunça, mas se sentia em casa. À vontade e acolhida.
O prédio à sua frente, no entanto, era o oposto de tudo aquilo. Cinza e sóbrio, ocupava todo o quarteirão. Belo e intimidante. não sabia nada sobre ele; não sabia onde era a secretaria, nem os banheiros, muito menos as salas. Ignorou o frio no estômago e, enfrentando as esfinges gregas que guarneciam a escada, subiu os degraus que a levariam ao pórtico.
Pediu informações e, sem muita dificuldade, chegou ao departamento que procurava. Os documentos foram preenchidos e assinados, só precisava entregar algumas vias no prédio de Letras e pronto. Estava prestes a perguntar como chegar, quando uma voz a interrompeu.
— Licença.
se virou, encontrando um rapaz que deveria ter aproximadamente a sua idade. Os olhos azuis contrastavam com o tom bronzeado de sua pele, os cabelos eram de um dourado escuro, queimado pelo sol.
— Desculpa, mas eu ouvi que você precisa ir até o prédio de Letras — ele disse. — Eu estou indo para lá... Se você quiser, eu te mostro onde fica a secretaria.
ponderou a probabilidade de o rapaz ser um assassino em série e, chegando à conclusão de que estaria a salvo desde que se mantivesse rodeada por gente, concordou.
— Obrigada.
Seguiu o rapaz de volta à mesma rua estreita que a levara a Via Corso Umberto I, surpreendendo-se ao descobrir que havia passado pela faculdade de Letras e sequer a tinha notado. A entrada era um discreto arco numa parede que se estendia pelo quarteirão, acima dele, cravado em pedra e quase imperceptível, as palavras Università Degli Studi Federico II, Facoltà di Lettere e Filosofia.
O arco levava a um pátio, numa construção que se assemelhava a um monastério. E, assim como acontecia quando entrava na Cidade Universitária, um novo mundo a acolheu. O verde vivo do canteiro quebrava a austeridade acadêmica, e as paredes brancas ganhavam vida em cartazes e faixas. A maior delas se desenrolava por vários metros, letras grandes em um vermelho inconfundível. La revoluzione è un fiore che non muore¹. Um sorriso de reconhecimento se desenhou nos lábios de . Seu pequeno mundinho das Letras.
— A secretaria é ali. — O rapaz apontou, quando entraram em um dos prédios.
— Obrigada.
— Por nada. — ele disse simpático, seguindo seu caminho.
A moça da secretaria pegou seus documentos e assinou mais algumas coisas. Estava oficialmente matriculada na Laurea Magistrale de Filologia, Letteratura e Civiltà del Mondo Antico, como informava o papel timbrado que trazia seu nome no topo e o cronograma do curso.
Com a parte burocrática concluída, ela caminhou pelo prédio. Descobriu onde ficavam os banheiros, a sala com os computadores e impressoras, a cantina. Por último, encontrou aquela que seria sua fiel companheira ao longo do ano, a biblioteca. Usou o passe temporário que a moça da secretaria havia lhe dado até que a carteirinha oficial ficasse pronta e entrou.
Familiarizou-se com o catálogo digital e apreciou o som tão característico de passos ecoando por entre as estantes cheias de livros. O mesmo rapaz que a ajudara mais cedo guiava um carrinho pelos corredores, repondo as edições a seus lugares nas prateleiras. À vontade em seu habitat natural, tocou as lombadas e se perdeu em meio aos títulos.
📚💙⚽

Munida de todos os documentos de que precisava, seguiu para a próxima etapa da jornada. Pegou seu pequeno mapa mais uma vez e fez o trajeto até o metrô. Na estação Università, foi ao guichê de atendimento e deu entrada ao pedido do passe único de estudante. Ia colocando a vida em ordem uma tarefa de cada vez. O emaranhado de coisas a fazer se desenlaçava ao mesmo tempo em que sua vida em Nápoles ganhava forma.
Ao voltar à rua, o sol alto no céu, decidiu que era hora. Já havia esperado demais. Procurou o restaurante com a aparência mais napolitana possível (o que era uma bobagem, afinal estava em Nápoles; tudo ali era o mais napolitano possível) e entrou. Meio sem jeito, pediu uma pizza.
O coração bateu ansioso durante toda a espera e a primeira mordida veio com uma explosão de sabores: o molho, a mozarela, o manjericão, a leve crocância da massa. O aroma delicado enchia seus pulmões, tornando a experiência ainda mais memorável e fechou os olhos, concentrando-se nos únicos sentidos que importavam no momento.
Comeu sem pressa, uma mordida de cada vez, entre um gole e outro de vinho, enquanto observava o movimento no pequeno restaurante. Cercada por conversas altas, tinha a impressão de que todos se conheciam. Não entendia uma palavra do dialeto napolitano, mas gostava de como soava — tão parecido e tão diferente do italiano. Assistindo às pessoas, começava a perceber um compasso diferente. Estava na língua e nos gestos e no trânsito.
Antes de deixar o restaurante, perguntou ao homem que a havia atendido como chegar ao mar. Em italiano, ele explicou que, por perto, só havia o porto, mas deu instruções de como chegar à praia Lido Mappatella. Por coincidência, era o caminho que ela faria para voltar para casa.
Desceu na mesma rua onde pegara o ônibus aquela manhã e entrou no parque. Sem medo de se perder, guiou-se pelo próprio instinto. Caminhou devagar e, quando menos esperava, chegou à pequena praia. Apesar de ser uma cidade costeira, Nápoles não era uma cidade praiana. Mappatella não se assemelhava em nada às praias brasileiras. O curto espaço de areia que levava ao mar não era dos mais bonitos. A areia, grossa e de um tom escuro, daria a impressão de estar suja mesmo que não estivesse (as bitucas de cigarro, porém, comprovavam que estava). Mas não estava ali pela praia. Estava ali pelo mar.
Seus passos cessaram no instante em que o horizonte se vez visível, céu e água se encontrando numa mistura de azuis. Ao fundo, em toda sua majestade, o vulcão que destruíra Pompéia. Era deslumbrante. Dessa vez, no entanto, ela não perdeu o ar, mas encheu os pulmões, respirando fundo como se quisesse guardar a paisagem dentro de si.
Aproximou-se até o ponto em que as ondas, fracas, quase tocavam seus pés. O vento batia em seu rosto, bagunçando seus cabelos e trazendo alívio contra o sol ainda quente. O som das ondas se sobressaía ao som do trânsito e era fácil esquecer que a vida seguia com todas as atribulações de uma terça-feira. Subiu no caminho de pedras que adentrava o mar, andando com cuidado sobre elas. Então se sentou, tirou a mochila das costas e descalçou os sapatos. Ergueu a barra da calça e levou os pés às ondas, a água gelada recebendo sua pele com sutileza, um mar tranquilo e convidativo.
Sentada, apreciando a paisagem e a calmaria do momento, não percebeu as horas passarem. Nem sequer sentiu falta de ter um livro consigo. Com os olhos no horizonte, não se preocupou com nada. Não criou uma lista de todas as coisas que ainda precisaria resolver, nem de tudo o que possivelmente (provavelmente) daria errado ao longo do ano. Sentada sobre as pedras, sob um céu azul, os pés no mar e o vento tocando seu rosto, não se importava com nada daquilo.
Pensava apenas em como era incrível que, seguindo aquele mundaréu de água, poderia chegar mais longe do que jamais havia ido. Um mundaréu de água que se estendia aparentemente sem fim. E, mesmo diante de tamanha vastidão, mesmo sentindo-se pequena, sentia-se segura.
Assistiu ao céu ganhar tons de laranja e lilás e só depois se levantou. Com a mochila nas costas e os sapatos nos pés, fez o caminho para casa. O coração leve e o espírito livre.

¹ La revoluzione è un fiore che non muore – a revolução é uma flor que não morre


Capítulo 4

anotava tudo. Tinha a impressão de que as coisas ficavam mais claras em sua mente depois que as colocava no papel. A ação de guiar a caneta pela página tornava tudo mais palpável — se estivesse escrito, parecia mais real. Ideias bobas, informações importantes, memórias queridas. A matéria enquanto estudava, as passagens marcantes em livros (mas nunca os da biblioteca), os sentimentos conflitantes em seu peito. Tinha uma agenda e um caderno que estavam quase sempre consigo. A agenda era o lugar da bagunça, onde anotava tudo e qualquer coisa. Nomes ou títulos aleatórios que queria pesquisar mais tarde, listas das mais variadas coisas, planos. O caderno era mais organizado, melhor cuidado. Nele anotava só as coisas realmente importantes, de valor sentimental mais do que intelectual. Momentos e frases que gostaria de guardar e recordar.
Fora nesse último que passara a noite escrevendo, tentando colocar nas páginas o encanto de tudo o que vira e sentira até ali. Tentava descrever Nápoles em palavras, mas falhava. Não tinha o dom de seus poetas favoritos; amava as palavras, mas não conseguia transformá-las em magia. Sabendo que jamais seria capaz de capturar a beleza dos dias vividos, sabendo que suas palavras jamais fariam jus à magnitude das pequenas coisas, contentou-se em registrar da melhor forma que podia a sua aventura. Uma recordação para o futuro, para que, mesmo quando os dias em Nápoles se tornassem distantes, não fossem esquecidos.
Na manhã seguinte, no entanto, foi a agenda que pegou. A da bagunça. Rabiscou cálculos, pesquisando o melhor custo-benefício dentre as operadoras de celulares. Sabendo exatamente o que queria, foi até a loja da operadora. Recusou todas as ofertas mirabolantes que envolviam aparelhos modernos e planos ousados demais para alguém que odiava falar ao telefone. Mil minutos por mês era o equivalente a 16 horas e mais um pouco. Ela nem sequer conhecia 16 pessoas na cidade.
Guardou o chip antigo com cuidado (precisaria dele quando voltasse para o Brasil) e anotou o número novo na agenda. Sua primeira ligação foi para a operadora de internet. Ouviu todas as opções de pacotes que a atendente lhe ofereceu, a agenda em mãos, enquanto ela tomava nota e fazia contas rápidas. Ao desligar o telefone, após longos e torturantes minutos, tinha um combo mega-ultra-plus de centenas de canais a cabo, 100 MBs de internet e seis meses promocionais. Ou teria, quando o pessoal da empresa instalasse tudo no dia seguinte.
Estava orgulhosa de si mesma. Odiava conversar ao telefone e odiava ainda mais resolver questões como aquela com grandes companhias, mas conseguira. E tudo em italiano! Sentia-se uma verdadeira adulta e, como tal, abriu a geladeira e pegou uma cerveja. Jogou-se no sofá e tomou o primeiro gole. O gosto era péssimo, mas a sensação de missão cumprida tornou a bebida mais agradável.
O silêncio no apartamento não a incomodava. Gostava de silêncio. Gostava do silêncio acompanhado, aquele quando tinha intimidade suficiente com alguém para estarem juntos sem que precisassem interagir o tempo inteiro. Como quando lia deitada no sofá e Duda resolvia os problemas da faculdade na mesinha da sala. Gostava também do silêncio solitário. Era bastante apegada às pessoas com quem convivia, mas apreciava os momentos de solidão. A sala de cinema vazia na primeira sessão de sábado, os banquinhos vagos da faculdade quando chegava muito cedo. Gostava daqueles instantes, às vezes breves, que eram só seus; quando podia pensar e sentir sem a interferência de um milhão de coisas.
Depois de alguns goles de cerveja, no entanto, começou a ficar incomodada. Mudou de posição no sofá uma, duas vezes. Pés no chão, pés para cima. Pernas cruzadas, estiradas, deitada. O que a incomodava não era o fato de estar sozinha, era não ter opção. O que a incomodava não era a solidão, era o isolamento.
Olhou o relógio — 15h —, então pegou o computador em busca daquela que era sua companhia favorita.
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O papel com as instruções da faculdade mencionava quatro bibliotecas. Além da que ficava na própria faculdade, mencionava ainda outras três. Algumas próximas do prédio de Letras, outras mais distantes. Uma delas, a Biblioteca Nazionale Vittorio Emanuele III, era dividida em dois prédios que ficavam localizados em pontos distintos da cidade.
Armada de mais um mapa que ela mesma havia desenhado, entrou no metrô. Atenta ao nome de cada parada, fez a baldeação e desceu na estação Municipio. Um pouco insegura pelo trânsito maluco, seguiu o caminho traçado no pequeno papel. Ônibus de agências de viagem chegavam a todo instante, cheios de turistas que se acumulavam na pequena rampa rumo à entrada do Castel Nuovo.
parou para admirar a construção de aparência medieval e um grupo de senhoras se aproximou, pedindo, em uma combinação de italiano e espanhol, para que ela batesse uma foto. As quatro senhoras se abraçaram em poses sorridentes e em seguida agradeceram com entusiasmo, observando a foto na câmera. ainda observou o castelo por mais alguns segundos, memorizando a sua localização para visitá-lo em outra oportunidade, então seguiu. Olhou para ambos os lados da rua, mentalizando uma prece rápida para que por favor não fosse atropelada, e, quando encontrou uma oportunidade entre o trânsito normal e os ônibus de turismo, atravessou correndo.
Respirou aliviada ao chegar à outra calçada e riu de si mesma. O mapa em sua mão indicava que só precisava seguir a rua, mas outra construção chamou sua atenção. Diferente do castelo, aquela era mais delicada. Branca com grandes pilastras na fachada e, sobre o arco de entrada, o nome Galleria Umberto I. Mais um local para visitar no futuro.
Levaria tempo para memorizar onde ficava cada lugar e como chegar em cada um deles, mas não tinha pressa. Não precisava memorizar Nápoles por completo em uma semana. Na verdade, a beleza estava justamente em memorizar a cidade aos poucos. Em, com os dias, semanas e meses, perceber que já não precisava seguir as linhas traçadas no pedaço de papel. Até lá, no entanto, não havia nenhum problema em pesquisar três vezes o trajeto para o mesmo destino.
Mais alguns passos e avistou a Piazza Del Plebiscito. Ampla e aberta, a piazza tinha o formato de um semicírculo e, em posição de destaque, estava a exuberante Basilica di San Francesco di Paola. Turistas e locais dividiam o espaço, indo e vinho, enquanto crianças jogavam bola e corriam. caminhou por entre as pessoas, um arrepio suave percorrendo seu corpo por ser, ela também, parte da cena que se desenrolava. Não se sentia dona do mundo tal qual as mocinhas nos filmes, mas começava a perceber que Nápoles estava ao alcance de seus dedos, apenas esperando.
Usando a Basílica como ponto de referência, girou o corpo até encontrar o Palazzo Reale di Napoli. A grande entrada levava a um pátio semelhante ao da faculdade de Letras, ali, porém, não havia jardim. A construção era mais majestosa; as paredes de um tom entre o rosa e o laranja contrastavam com pilastras cinza. caminhou até a porta do prédio principal e um sorriso involuntário tomou seus lábios ao pisar na recepção da Biblioteca Nazionale Vittorio Emmanuelle III.
Seus olhos se ergueram, acompanhando as estantes de madeira escura e indo até os arabescos em dourado na parede branca. Os detalhes e a bela pintura no teto deixavam claro que aquela não era uma biblioteca qualquer. Era uma biblioteca dentro de um palácio real. pegou um mapa na recepção e seguiu por uma das salas.
Deslumbrada com as estantes que pareciam não ter fim, repletas de livros antigos — lombadas gastas pelo uso e capas envelhecidas pelo tempo —, sentiu-se em uma espécie de paraíso. Era como se todos os livros do mundo estivessem bem ali. Seus passos ecoavam no piso de madeira, acompanhando as batidas de seu coração. Um labirinto de salas; todas cheias de livros, estantes majestosas e arabescos pelas paredes.
Se amor à primeira vista de fato existia, então foi isso o que sentiu ao chegar à sala de leitura. Já se imaginava em uma das mesas, livros abertos e lápis na mão. Mal podia esperar. A voz de Duda invadiu sua mente com um comentário reprovador, mas não se importou. Livros eram, sem dúvida, a melhor invenção da humanidade. Ganhando em disparado da roda ou da energia elétrica. Livros eram amigos fiéis e companheiros leais. Vinham nos mais diversos tamanhos e formatos, mas tinham sempre uma mesma missão: acrescentar e transformar. O mundo, o leitor. Alguns, apenas por breves instantes; outros, por séculos a fim. Aqueles que resistiam ao tempo, acrescentando e transformando geração após geração, eram seus favoritos. Um bom livro era o melhor amigo que ela podia levar onde quer que fosse.
Enquanto caminhava, em um gentil acaso, descobriu-se no jardim elevado sobre a biblioteca e o restante do Palazzo Reale. O sol queimava ainda alto no céu e a vista – o castelo Nuovo, o mar e o Vesúvio – completava o passeio com perfeição. se sentou, com as pernas cruzadas e o coração cheio, depois de horas muito bem acompanhada.
Sorriu, admirando a cidade. Seu cérebro, que transformava tudo em listas, tratou de elencar seus lugares favoritos do pouco que havia conhecido de Nápoles. Talvez o Lungomare viesse em primeiro e a Piazza Amedeo em segundo. Nesse caso, a biblioteca viria em terceiro. Franziu a testa, incomodada com o ranking imaginário. Gostara muito de cada um daqueles três lugares, mas de forma e por motivos diferentes. Todos eles, porém, tinham um elemento em comum: faziam com que ela se sentisse acolhida e bem-vinda.
Organizava os pensamentos, tentando analisar qual deles era de fato seu favorito, quando uma brisa sutil lhe trouxe uma revelação: não precisava escolher. Não precisava de um ranking (de uma lista talvez, mas não de um ranking). Podia gostar de todos aqueles lugares em igual medida, ainda que de formas diferentes. E, enquanto a brisa levava consigo o peso da decisão, percebeu que, apesar de ter seus pontos favoritos na cidade, começava a gostar de Nápoles por inteira.
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A internet foi instalada na manhã seguinte. Na hora do almoço, já tinha um Wi-Fi para chamar de seu e vários canais na televisão. Sentada no sofá, vendo um programa de variedades, teve a ideia de preparar um bolo para Giulia como agradecimento. Separou os ingredientes para um bolo de cenoura com calda de chocolate, então lembrou que não tinha liquidificador. Acabou assando um bolo formigueiro e, ao fim, a casa inteira cheirava a bolo recém-saído do forno; o cheirinho de lar em um domingo preguiçoso. Não resistiu, fatiou um pedaço ainda quente e comeu em frente à televisão, como fazia quando era pequena na casa da avó. A nostalgia e a sensação familiar quebraram a barreira do espaço e do tempo, transformando o ambiente. Colorindo o apartamento com o matiz de sua infância, de suas memórias. Um tom único, só seu, tomava as paredes, as frestas e os cantos da casa.
O aroma adocicado encheu o coração de de alento e saudades. Em uma tentativa de se sentir mais perto da mãe, preparou para o jantar aquele que era o prato típico dos domingos em família. Aos poucos, ia descobrindo as particularidades de cada coisa em sua cozinha. O forno levava 55 minutos para assar o mesmo bolo que ela estava acostumada a assar em 40; ao passo que o fogão precisava de apenas um minuto para refogar (e queimar) o alho e a cebola. Seguia a receita do jeitinho que a mãe fazia, mas não ficaria igual. Nunca ficava. Terminava de preparar o jantar, quando passos distantes denunciaram a chegada de Giulia.
pegou o segundo bolo que havia assado e correu até a porta.
— Giulia! — chamou, interrompendo a vizinha, prestes a entrar em casa. — Oi, boa noite.
— Oi, . Está tudo bem? — A italiana sorriu, mas os olhos fundos, embora simpáticos, entregavam que tivera um dia difícil.
— Sim, eu só queria agradecer pela senha do Wi-Fi. O meu foi instalado hoje. E por todo o resto também. Não é muita coisa, mas... — estendeu o bolo para Giulia, que fechou os olhos ao inspirar o aroma suave.
— Eu tive um dia péssimo, mas você acaba de salvar a minha noite. O cheiro está é uma delícia. Obrigada.
A vizinha fez menção de entrar, mas a interrompeu outra vez.
— Quer jantar comigo? Assim você não precisa cozinhar e eu ainda aproveito e retribuo o favor. Está quase pronto. — gesticulou para o próprio apartamento.
O corpo de Giulia relaxou e sua cabeça caiu minimamente para trás, em um suspiro aliviado.
— Eu vou aceitar, sim! Sinceramente, eu não ia nem jantar. Só ia cair na cama, mas já que você convidou, eu aceito. A gente come o bolo de sobremesa depois — disse, mais animada, os olhos ganhando um pouco mais de brilho.
— Esse é seu! Mas eu tenho outro igual aqui para a gente comer depois do jantar.
Um belo sorriso se desenhou no rosto de Giulia, o cansaço brevemente esquecido.
— Eu só vou guardar o meu bolo, então. Tomar um banho, trocar de roupa e eu já volto.
concordou, entrando e terminando de arrumar a mesa, agora para duas pessoas. Logo, ela e Giulia já se sentavam.
— O cheiro está ótimo! — Giulia comentou, mas em seguida franziu o cenho. — O que é?
— Arroz e parmigiana. — sorriu amigável, mas a expressão de Giulia não relaxou.
— Como você fez a berinjela? — A italiana perguntou, servindo o próprio prato. — Você cortou em rodelas? Aqui nós cortamos em fatias.
— Eu sei, mas eu prefiro em rodelas. E eu fiz a berinjela empanada com pangrattato¹, farinha e ovo. É a receita da minha mãe. Fica uma delícia, crocante.
O olhar de Giulia era cético.
— Usou fior di latte²?
— Não.
À provola³? — Giulia arqueou uma sobrancelha.
— Não...
— Então não é parmigiana. — a napolitana disse simplesmente. — Parmigiana não se empana e muito menos com pangrattato. E vai ou fior di latte ou à provola!
— Bom, a parmigiana da minha mãe é com a berinjela empanada. Com pangrattato. E vai a mozzarella que tiver na geladeira — rebateu, incomodada.
— A sua mãe pode dar o nome que quiser para receita dela, mas parmigiana é que não é. Se a minha avó tivesse rodas, ela seria uma bicicleta!
olhou para a vizinha, a irritação dando lugar à confusão. Então caiu na gargalhada.
¬— Come, depois você reclama. Mas vocês não podem reclamar muito, não. Esses dias eu vi um sanduiche que era polpetta³ e parmigiana no pão!
— É uma delícia, e a parmigiana não era empanada.
— Para mim é esquisito. Da mesma forma que a minha parmigiana é esquisita para você.
Giulia encarou por alguns segundos, então, meio relutante, aceitou os fatos. Deu a primeira garfada na comida e, sem que pudesse evitar, suspirou com o sabor. fingiu não ter percebido, mas se sentiu vitoriosa.
— Não é ruim. — a italiana comentou, sem dar completamente o braço a torcer, enquanto partia para a segunda garfada.
— É muito bom, isso sim!
Giulia sorriu. O resto do jantar foi tranquilo, sem muita conversa. Giulia estava ocupada demais comendo (e repetindo!) para falar. Quando as duas já tinham terminado, a vizinha se ofereceu para lavar a louça.
— Pensei que você odiasse lavar a louça. — comentou.
— Odeio! Mas você cozinhou, eu lavo. É justo.
Não havia muita louça, mas se pôs a secar e guardar enquanto Giulia lavava.
— Você gosta de futebol? — A vizinha perguntou, parando de ensaboar um dos pratos e se virando para olhá-la.
mais do que gostava de futebol. Amava o esporte. Era aquela torcedora que se incluía na vitória e na derrota, sempre dizendo “ganhamos” ou “perdemos”. Não arranjava brigas, mas pegava antipatia por qualquer pessoa que fizesse brincadeira de mal gosto com seu time. São Paulo, no caso. Não perdia um jogo e acompanhava os cálculos do campeonato com atenção.
Não mencionou nada daquilo para Giulia, apenas sorriu e concordou com a cabeça. Quando começava a falar sobre futebol – assim como quando começava a falar sobre literatura clássica – não parava mais, e não queria assustar a vizinha. Já tinham tido conflitos suficientes com todo o dilema da parmigiana.
— O campeonato vai começar esse fim de semana. — continuou Giulia. — Aqui, a gente torce pelo Napoli. O nosso estádio é o San Paolo, Maradona é Deus e a Juventus é merda.
quis rir da forma exagerada que a vizinha falou, mas Giulia a olhava com olhos tão sérios que achou melhor não.
— Entendi.
— Você gosta de ir no estádio? — Giulia voltou a atenção para louça, a expressão mais leve.
— Muito! Eu ia sempre com a minha mãe e a minha avó. Meu avô ia com a gente, mas não ligava tanto. Meu pai também não liga. Mas a minha avó era torcedora roxa! — Sorriu com a lembrança.
— Na minha família, todo mundo é torcedor roxo. Ninguém perde um jogo no San Paolo! Pena que a partida de domingo é fora de casa... Mas na próxima você pode vir com a gente. Meu irmão consegue as entradas de graça para você.
— Sério? — Os olhos de brilharam com o convite.
Depois de se despedir de Giulia – que agradeceu o jantar e, sem perceber, até fez um elogio à parmigiana –, se aconchegou no sofá com o notebook no colo. Com seu próprio Wi-Fi logado, conferiu as horas e ligou para os pais. Passou um tempão conversando e só desligou a chamada de vídeo quando o sono ficou mais forte do que a saudades.
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Nápoles havia se transformado. não sabia se era por causa do início do campeonato italiano ou um reflexo de sua conversa com Giulia. Não sabia se tudo aquilo estava ali antes e ela – focada e preocupada com outras coisas – simplesmente não notara. O fato era que traços do time estavam espalhados por toda a cidade. Camisas e bandeiras azuis balançavam ao vento nas varandas e nas barraquinhas de rua. Maradona era mesmo um deus. As lojinhas de souvenir estavam cheias de miniaturas do argentino e, agora mais atenta, notava as declarações de amor ao jogador nas pichações pelas ruas.
Uma contagem regressiva pairava sobre a cidade, que vibrava ansiosa para o primeiro jogo da temporada. A energia era contagiante de tal forma que se viu torcendo para que o time vencesse, mesmo sem saber quando ou contra quem seria a partida. Conhecia pouco sobre o clube da cidade. Tinha uma vaga lembrança ter visto a equipe napolitana jogar duas ou três vezes. Não tinha o costume de acompanhar o campeonato italiano, mas, vez ou outra, enquanto mudava de canais à procura de qualquer coisa para matar o tempo, encontrava uma partida e assistia.
Não haviam sido jogos memoráveis. Ela nem sequer se lembrava das partidas em si, mas lembrava que o irmão mais novo de Fabio Cannavaro era o capitão do time. Lembrava também de um lance em particular; um corte dentro da área em que um dos zagueiros havia roubado a bola com precisão e, apesar do perigo, saíra para o jogo com tranquilidade. Era apaixonada pela zaga e belas defesas eram seu ponto fraco, por isso, a jogada lhe marcara tanto.
No sábado, caminhando por um dos pontos turísticos da cidade, parou em uma barraquinha que vendia camisetas do time. A senhora que cuidava das vendas falava sobre a equipe com propriedade, gesticulando sem parar com um cigarro aceso entre os dedos. observou as camisetas, analisando os nomes e os números. Reconhecia alguns, como o do uruguaio Cavani, que havia se destacado na Copa do Mundo poucos meses antes.
— Hamsik. Cannavaro. Lavezzi.
— Como? — desviou a atenção das camisas, virando-se para a senhora.
— As que os turistas mais compram. — A italiana deu de ombros, soltando a fumaça do cigarro.
tentou segurar a tosse, mas não teve muito sucesso. Quando a fumaça se dissipou, perguntou:
— E os napolitanos?
A senhora ergueu uma sobrancelha, olhou bem para ela, então virou o rosto para soltar a nuvem cinza outra vez, agora longe de .
, Cannavaro, Hamsik, Lavezzi. Mas Cavani tem saído feito água também, é a aposta da temporada. — A italiana falou com entusiasmo. — Vai ser gol que não acaba mais!
voltou os olhos para as camisetas. A que trazia o nome nas costas era a número 5; tentou lembrar se fora ele o jogador a realizar a defesa que lhe parecera impecável, mas não tinha certeza. Tinha a vaga impressão de ter visto o número 5 na ocasião, mas não conseguia precisar se era mesmo 5 ou 15.
— O é zagueiro? — perguntou.
— O melhor! — A senhora gesticulou, enfática.
considerou por um momento. O tal era bastante querido pelos torcedores, mas lhe parecia errado comprar a camiseta de um jogador que não conhecia. Parecia trapaça. Pensou em comprar uma de Paolo Cannavaro, mas novamente hesitou. Também não o conhecia muito bem, reconhecia o nome muito mais pelo irmão, que era o capitão da seleção italiana.
Não acompanhava o Napoli, portanto, não conhecia nenhum dos jogadores do time de verdade. Então, decidindo que não compraria a camiseta de ninguém até ter uma opinião real sobre aqueles jogadores, optou por um cachecol. Suas mãos se fecharam ao redor do tecido macio e quentinho. Azul claro, com o nome do time em letras brancas. Sorriu, lendo a inscrição, e pegou o dinheiro na bolsa.
— Sábia decisão. — A senhora concordou, exalando a fumaça do cigarro ao entregar o troco para . — Jogadores vêm e vão, mas o time... O time é para sempre.
agradeceu e, quando já estava se afastando, a voz grave e rouca a chamou mais uma vez, as palavras carregadas pelo vento como uma profecia.
Forza Napoli Sempre!
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As chamadas na televisão a avisaram que o jogo seria no domingo, às 20h45, contra a Fiorentina. acordou ansiosa para ver o time. Seus fins de semana no Brasil eram recheados de futebol, seria bom manter um pouco da antiga rotina. Ainda que não fosse a mesma coisa, ainda que não fosse o seu time do coração, era futebol. Algo que ela amava, que a distraía de suas preocupações e a fazia esquecer – por 90 minutos – os problemas corriqueiros e as tristezas ocasionais.
Aprendera a amar o futebol com a avó materna. Dona Aurora amava o esporte mais do que qualquer pessoa que já havia conhecido, com ela descobrira a beleza e a paixão pelo jogo. São paulina como ninguém, primeiro passara o amor pelo clube à filha e depois à neta. Para , ser são paulina era mais do que uma escolha natural, era uma parte de sua identidade, parte de quem era. Dividia até o nome com o time e, em seus piores dias, ele sempre vencia. Sempre. Uma vitória que ela aceitava para si, como um lembrete para seguir. Uma mensagem de que tudo ficaria bem.
Amava muitas coisas no futebol, mas sua favorita era o paralelo que fazia do esporte com a vida. O velho clichê de que, enquanto o apito final não soasse, tudo podia acontecer. Uma lição para jamais se dar por vencida antes da hora, antes do fim absoluto. Contanto que continuasse a jogar, que desse o melhor de si e lutasse por cada bola como se fosse a mais decisiva da partida, a vitória chegaria. Antecedida por muitas derrotas, claro, afinal, era preciso perder para aprender a ganhar. Mas chegaria.
Aconchegou-se no sofá, as janelas abertas para aliviar o calor da noite que apenas começava a escurecer, e ligou a televisão. O balde de pipoca entre os braços e o copo de suco descansando na mesinha de centro. Olhou o relógio, fazendo um cálculo mental do horário em que terminaria a partida, e sorriu ao constatar que daria tempo de ligar para os pais e para Duda antes de dormir.
Na televisão, o comentarista repassou as informações sobre os times, e as equipes entraram em campo. A câmera mostrava os jogadores, um a um, o hino italiano ao fundo. inclinou o corpo, em um movimento inconsciente para se aproximar da TV, e prestou atenção nos rostos. Não acompanhara a seleção italiana durante o fiasco na Copa do Mundo da África do Sul, mas assistira à partida em que a Itália fora eliminada.
Reconheceu um ou dois jogadores da seleção azzurra no time de Florença e então arregalou os olhos ao ver no time napolitano o jogador de moicano que havia contribuído com uma assistência para a eliminação da Itália. Riu, diante da ironia, e recostou-se no sofá outra vez, pegando um punhado de pipocas enquanto o árbitro apitava o início da partida.
O entrosamento de Cavani com a equipe ficou claro ainda nas primeiras jogadas. De acordo com o homem narrando o jogo, aquela era apenas sua segunda partida oficial com o time, e Edinson já havia marcado dois gols na primeira (um jogo dos play-off para a Europa League). se lembrou da senhora que lhe vendera o cachecol, Vai ser gol que não acaba mais! ela havia dito, e, aos seis minutos, o presságio ganhou vida.
Depois de controlar a bola no meio de campo, Lavezzi fez o passe para Hamsik, que a mandou à frente para o lateral-esquerda. Dossena correu e, com a bola a poucos metros da linha de fundo, cruzou em direção ao gol. Cavani, posicionado na pequena área, cabeceou. A bola bateu no travessão e, para a loucura do comentarista, pingou dentro do gol. Os jogadores explodiram em comemoração e sorriu.
Aos dez minutos, no entanto, dois jogadores napolitanos, um seguido do outro, perderam a chance de fazer o corte e roubar a bola do adversário. Uma careta de desagrado se desenhou em seu rosto ao ver a bola chegar com tranquilidade ao atacante fiorentino posicionado na área. Um dos zagueiros, atento ao jogo e notando que seu colega de posição havia perdido o tempo da bola, avançou, assumindo a jogada para si. O carrinho limpo dentro da área a fez sorrir, reconheceu a precisão do jogador antes mesmo de ver o número que trazia nas costas. Número 5.
O primeiro tempo seguiu com chances alternadas e boas defesas do goleiro napolitano. Aos três minutos do segundo tempo, Gilardino – jogador da viola – recebeu uma bola longa na entrada da área. O atacante, mesmo marcado por Cannavaro, conseguiu fazer o passe para D’Agostino que, em um momento de descuido de Campagnaro – terceiro zagueiro e encarregado de marcá-lo –, ficou livre para receber a bola. Dessa vez, porém, o zagueiro com a camisa cinco não conseguiu corrigir o erro do companheiro. D’Agostino lançou a bola com força em direção ao gol, e o goleiro pulou, esticando o corpo, mas não chegou a tempo. Fiorentina empatava o placar.
A outra grande chance do jogo veio apenas aos 70 minutos, com um escanteio para o time de Florença. O goleiro napolitano realizou a difícil defesa, mas a bola permaneceu viva na área. rapidamente controlou a bola e, desviando dos atacantes rivais, saiu para o jogo. Lançou-a para o lateral-direita Christian Maggio que, em velocidade, liderou o contra-ataque. Maggio entrava na grande área, e já antecipava o passe que levaria ao segundo gol de Cavani, quando o zagueiro rival fez o corte.
As chances continuaram a se alternar, apesar de a Fiorentina parecer mais perto de virar o jogo do que o Napoli. comia o que restara da pipoca com um tiquinho de apreensão, ofuscado pela alegria de estar fazendo algo que amava – mesmo que em um contexto totalmente novo. Queria que o time napolitano ganhasse, mas não ligava tanto para o resultado. Seria legal olhar para trás e lembrar que o time vencera a primeira partida dela em Nápoles; mas, se não vencessem, tudo bem. Estava feliz pelo simples fato de assistir a uma partida de futebol outra vez.
Estar em um lugar onde ninguém a conhecia era, em muitos sentidos, libertador. Sem o olhar e as noções já estabelecidas de parentes e amigos sobre quem ela era, descobriu um tipo de liberdade que nunca havia experimentado antes. Sentia-se livre de si mesma. Livre para ser quem bem entendesse. Era libertador, mas também assustador. Quase como se não soube quem era sem a percepção daqueles que a conheciam tão bem. Como se estivesse não só perdida no mundo, mas perdida de si. Ali, porém, sentada no sofá da casa que começava a reconhecer como sua, fazendo uma das coisas que mais gostava, sabia exatamente quem era.
Antes que o jogo acabasse, nos minutos finais do acréscimo, a Fiorentina conseguiu um escanteio. Os jogadores de ambos os times se posicionaram na área napolitana em uma mistura de azul e violeta. O goleiro se esgoelava, gritando com os companheiros, que, concentrados, não ouviam. Percebendo que seria inútil continuar a gritar, o goleiro foi até o zagueiro que trazia o número 5 nas costas e o puxou pela camisa, reposicionando-o.
A cobrança foi autorizada, a bola fez sua viagem em direção ao gol e, em meio à confusão de pessoas tentando cabeceá-la, o camisa 5 foi o único a conseguir, afastando o perigo. A bola se perdeu pelo meio campo vazio, e o juiz apitou o final da partida. O goleiro reclamou com o companheiro de equipe, mas em seguida o puxou para um abraço. Uma mistura de bronca e agradecimento que fez sorrir.
Ao longo do jogo, ela chegou a correr os olhos pelo campo algumas vezes, observando o posicionamento daquele mesmo zagueiro. O comentarista repetia seu nome com frequência, mas fora o número em suas costas que ficara marcado em sua mente. A memória da defesa de antes somada às que realizara durante a partida diziam-lhe que era questão de tempo até ela, como admiradora da zaga, tornar-se fã do futebol que o rapaz jogava.
O rosto dele não era conhecido, e ela se questionou se estivera na Copa com a seleção italiana, se tinha ficado no banco durante os jogos. Não se ateve muito a esses pensamentos, no entanto, porque não importava. Os jogadores deixaram o campo, e o comentarista se despediu dos telespectadores.
desligou a TV, o coração batendo com aquela energia que sempre ficava no ar após uma partida de futebol. O primeiro elo entre ela e Nápoles estava estabelecido. Um elo presente, sem qualquer ligação com o passado. Não o amor pelo Napoli, nem a idolatria por Maradona, mas o prazer simples em apreciar a bola correr pelo gramado.


¹ pangrattato – farinha de rosca
² fior di latte – tipo de mozzarella mais cremosa e fresca, muito usada nas receitas napolitanas
³ a provola – mozzarella defumada

Continue...

Nota da autora: sem nota.