Sinopse: Pequenos momentos são tudo o que bastam para que nossos maiores sonhos sejam destruídos. Um único segundo de descuido e qualquer coisa pode acontecer. Para ele, não havia mais nada a se fazer, não havia mais vida sem ela, não havia motivo para continuar. Para ela, uma vida interrompida antes de realmente começar.
Não havia escapatória. Todas as vezes que fechava os olhos era jogado de volta no redemoinho de emoções do qual ele tentava fugir. Cada lufada de ar que entrava em seus pulmões o lembrava da vida que tinha, do sorriso faceiro que tinha no rosto, do coração batente que tinha, da luz que havia dentro dele. Não era necessário dizer que tudo aquilo havia se esvaído, trancados em um caixa no canto mais escuro de seu cérebro, um lugar que ele não queria mais acessar, um lugar que ele não precisava acessar mais. Não teria sentido, seria mais doloroso, o destruiria mais do que ele já estava destruído.
A casa que antes havia sido cheia de cor e vida, descansava sob as sombras, esquecida e sem uso, negligenciada pelos antigos moradores. Era impraticável olhar para o lugar onde havia construído grande parte de sua vida adulta, o lugar onde ele havia prometido passar o resto de seus anos com ela, o lugar que ele mais deveria gostar de estar, o lugar onde todos os problemas começaram.
Mas ao invés disso, ele se encontrou dentro de seu carro - seu carro novo - olhando através da janela para a garagem vazia, a porta trancada e a falta de pessoas vivendo da casa branca. Ele era capaz de imaginar parada na porta, seu corpo pequeno encostado contra o batente, olhando enquanto ele estacionava, um sorriso brincando em seus lábios à medida que caminhava até ela com a cabeça baixa, tentando esconder seus sentimentos, mesmo que fosse impossível. Um mísero olhar para a garota em frente a ele e já podia sentir o canto de seus lábios se curvando para cima, o coração acelerando à mera visão da mulher para qual ele estava voltando.
A porta da frente tinha visto de tudo, desde confissões de amor a brigas, desde gritos a beijos de reconciliação. Mas foram-se os dias em que ele iria sair de seu carro e caminhar até os braços dela, os dedos pequenos correndo pelos cabelos do rapaz, bagunçando-os, puxando-os levemente pela raiz numa tentativa de provocá-lo. Não havia mais beijos de despedida e palavras trocadas ao amanhecer. Não havia mais risadas entrando por seus ouvidos, mãos correndo pelo seu torso nu enquanto fazia café da manhã para eles, não havia mais beijos no ombro ou conversas murmuradas no meio da noite.
O rapaz fechou os olhos e suspirou, a dor em seu peito voltando com força total, as lágrimas em seus olhos escapando antes que ele pudesse contê-las, as mãos apertando fortemente o volante, as pontas dos dedos ficando brancas e dormentes. Pelo menos algo em seu corpo não sentia nada, pensou amargamente.
Não havia quase nada para ver mais. Os pés de não se moveriam da posição sobre o acelerador, as mãos não iriam puxar a maçaneta da porta para que ele pudesse sair de seu confinamento. A ideia de sair e encarar a casa era aterrorizadora e já podia sentir a garganta se fechando, ameaçando bloquear suas vias aéreas se o fizesse.
Ele escolheu engatar a marcha ré no carro, os olhos negligenciando a estrada atrás dele, antes de mudar a posição do câmbio para D e acelerar pela rua vazia sem nenhum outro pensamento. Nunca deveria ter ido àquele lugar, nunca deveria ter saído de seu isolamento, nunca deveria ter permitido que ela saísse com ele naquele dia.
...
Eles estavam gritando um para o outro novamente. Já era a segunda vez aquela semana e pelo mesmo motivo estúpido. não conseguia acreditar que tinha se deixado estressar por algo tão bobo quanto aquilo, mas lá estava eles, indo um para cima do outro como se brigassem por algo que realmente importasse.
- Você sabe que está sendo imaturo, certo? - O rosto dela estava vermelho, as mãos tremendo e ela não conseguia impedir o peito de subir e descer. estava brava com ele e ele sabia. Ele sabia que a culpa era sua e que deveria parar, mas não conseguia naquele momento. - Eu estou cansada disso!
- Ah, eu estou sendo imaturo? - Ele perdeu a cabeça, os braços se abrindo em frente à garota. - Ok, se você está mesmo cansada disso, talvez eu devesse apenas ir embora e te prevenir de me ver, que tal? - esticou a mão para a mesa de centro, pegando as chaves do carro, os dedos se fechando ao redor do chaveiro antes que pudesse caminhar em direção à porta da frente.
- Você não vai sair assim dessa conversa, , - disse, os olhos virando-se para ele, o corpo preparado para pular na frente dele se fosse preciso.
olhou-a de cima à baixo, os pensamentos correndo com mil e um cenários onde aquela noite terminaria de uma maneira diferente, mas já era tarde demais. Eles eram muito diferentes, estavam com a cabeça fervendo e precisavam manter a distância, pelo menos pelo momento. E então, sem mais nenhuma palavra, ele balançou a cabeça, a mão fechando-se sobre a maçaneta da porta e a abrindo, os pés batendo furiosamente contra o hall de entrada em direção ao carro estacionado na frente de casa.
Se estivesse prestando atenção às coisas ao seu redor, teria percebido que a porta não se bateu atrás dele e que passos seguiam sua marcha ritmada, alcançando a porta do passageiro do Tesla preto, a porta se fechando no mesmo momento em que a sua.
- Se você se importasse, não estaria fazendo isso conosco, - veio o sussurro da pessoa que havia entrado no carro com ele, os olhos de voltados para seu colo, as mãos escondidas pelo moletom preto.
Ela não conseguiria olhar para ele e ver a verdade em seus olhos. Ela não queria olhar para o homem por quem estava completamente apaixonada e perceber que aqueles dias tinham acabado. Ela queria acreditar que o quer que fosse, eles conseguiriam superar e não terminar daquele jeito. Era por isso que ela escolheu não o encarar. Ela não tinha a coragem de olhar para ele enquanto dizia, em cada palavra, que tudo havia sido um erro.
Mas não queria dizer nada. Ele não queria gritar com ela e se arrepender depois, ele não queria dizer coisas que não acreditava só porque estava bravo com a situação toda. Então, ao invés disso, escolheu dirigir. Escolheu manter a boca fechada e dirigir para longe do lugar que parecia envenenar seu relacionamento. Talvez, desse jeito, eles pudessem se acertar.
A chuva caía incessantemente naquela noite, o vento soprando ao redor deles, tornando a estrada mais difícil de ser enxergada. já tinha guinado o carro para o lado algumas vezes na pista molhada, os olhos nunca se desprendendo do para-brisa enquanto tentava navegá-los à salvo para onde quer que fossem, mas era difícil quando ele sentia que seu sangue ainda estava fervendo por causa da discussão acalorada que estavam tendo nem meia hora antes.
- Por que você continua fazendo isso? - perguntou, os olhos vidrados so perfil dele, tentando identificar qualquer pequena mudança em seu comportamento, qualquer linha em seu rosto que pudesse explicar tudo.
- Por que você continua falando nisso? - disparou, os olhos momentaneamente se desviando da rodovia para encontrar os dela numa mistura de medo e arrependimento. Ele sabia que os dele, provavelmente, mostravam algo que não queria, seu pior lado que aparecia quando estava estressado ou furioso com alguma coisa. E não é que estava bravo com ela, porque não havia real razão para ter esse tipo de sentimento para com ela, mas estava furioso com a situação, estava furioso que não conseguia manter seus sentimentos destrutivos de fora, estava furioso porque era apenas uma questão de tempo antes que ela lhe escapasse por entre os dedos e então não haveria mais nada para .
Ele queria parar o carro e dizer à ela que se arrependia, queria que ela soubesse que ele só estava tendo um dia ruim e que nada do que ele havia dito significava alguma coisa, queria que ela soubesse que ele se arrependia de tudo que havia dito, queria dizer que ela estava certa, que ele estava sendo imaturo ao discutir por causa de algo tão trivial quanto o novo trabalho dela, mas a parte egoísta que havia dentro de não permitiria que isso acontecesse e reprimiria todo pensamento em sua mente e forçá-lo a agir como um completo babaca. Manteria sua boca fechada até que tudo acabasse ou ela admitisse que ele estava certo. Mas também sabia que ela não faria isso. E era por isso que eles estavam tendo essa briga. Porque é isso o que acontece quando duas pessoas teimosas estão em um relacionamento.
- Eu continuo falando disso porque você não me deu um motivo para parar, ok? - gritou. Estava cansada de ter que pisar em cascas de ovos perto dele dentro da porcaria daquele carro. Ela estava cansada de ter que escolher suas palavras antes de dizer algo, estava cansada de não ter uma resposta direta.
E foi então que os gritos começaram novamente. Era uma competição de quem podia ser mais alto, suas vozes se misturando e as palavras perdendo os sentidos. Não havia como saber o que cada um deles dizia, se estavam se desculpando ou não, se estavam se acusando ou não. A chuva caía copiosamente, atingindo o carro e afogando os sons de qualquer coisa ao redor deles. Só havia , , a chuva e o carro naquela estrada vazia.
Ou foi o que pensaram. Foi difícil de entender o que aconteceu e de onde aquelas luzes estavam vindo a princípio, a intensidade cegando os dois amantes por alguns segundos, mas foi o suficiente para causar um estrago. Foi quem viu primeiro, uma alta buzina ecoando em sua cabeça, a visão do grande caminhão azul, os faróis brilhando na direção deles. Ela podia se ouvir gritando para prestar atenção, o terror em seus olhos refletido nos dele antes de o rapaz jogar o carro para o lado. Por um momento, ela pensou que estavam salvos, pensou que tudo ficaria bem, mas foi tudo em vão.
Antes que pudessem respirar aliviados, o carro atingiu alguma coisa, forte o suficiente para jogar seus corpos para frente, o cinto de segurança os prendendo no lugar, mas essa não era a maior preocupação. Em sua tentativa de se livrar do caminhão, jogara o carro na direção errada, atingindo o guard-rail ao seu lado, jogando o carro num mergulho no rio sobre o qual estavam passando.
No começo, parecia ser um sonho. fechou os olhos e balançou a cabeça, esperando pelo momento em que ela abriria os olhos no conforto de sua cama com ao seu lado, livre de todo drama, os braços dele entrelaçados ao redor de seu corpo, puxando-a para perto de si. E ela esperou para que isso acontecesse a qualquer minuto, mas quando a água começou a entrar no carro cada vez mais rápida, a mão de batendo contra o vidro e o frio tomando conta dela, a garota soube que não era o caso. Soube que estava realmente acontecendo e que ela deveria tentar o seu melhor para sair daquele lugar.
Os olhos dela finalmente fizeram contato com o interior do carro, o líquido transparente alcançando seus joelhos rapidamente enquanto ela tentava abrir a porta, puxando a maçaneta com toda a força, mas nada acontecia. olhou ao redor desesperadamente, tentando achar algo para quebrar o vidro, mas não havia nada que ela podia usar.
estava ao lado dela, os olhos arregalados, os braços fortes batendo contra a janela de vidro sem parar. Ele tinha que sair de lá, tinha que tirar os dois de lá. Porque era culpa dele. Ele quem estava dirigindo, ele que não havia prestado atenção para onde estava indo. Era ele quem os mataria, mas mais importante, era ele quem a mataria e isso não poderia acontecer. não se importava em escapar vivo, mas ela tinha que sobreviver. Ela tinha que sair daquele carro e viver sua vida. Ele não se importava em se afogar se isso significasse que a mulher que ele amava fosse sobreviver. Mas não havia nada que os dois pudessem fazer. Não havia coisa alguma que pudessem usar para se livrar do carro enquanto a água enchia suas celas de metal.
Não demoraria muito até que ficassem sem oxigênio, seus pulmões já guardando o que quer que tivessem restante caso algum milagre acontecesse, mesmo que as chances fossem mínimas.
E foi em algum momento desses pensamentos que parou de lutar completamente, os braços voltando para seu lugar ao lado do corpo, os olhos grudados no fundo do rio enquanto pensava em tudo que tinha passado. Não importava se ela iria sobreviver ou não, não importava se eles estavam brigando ou não. De repente, tinha se tornado consciente do fato de que a vida passa por você quer queira isso ou não, quer tenha aproveitado ou não. E ela tinha aproveitado. Viveu o melhor que pôde, ela riu, ela chorou, ela amou. E ela amara , o mesmo que estava sentado ao seu lado com os punhos batendo furiosamente contra o vidro numa tentativa fraca de os libertar, mas ela percebeu que já era tarde demais. Eles estavam ficando sem tempo.
E então, com o coração batendo mais rápido do que nunca, as mãos de se fecharam sobre as de , o rosto dela virado para o dele em pesar. Ela estava disposta a deixar-se ir se isso significasse que estaria com ele. Com os olhos vidrados nos dele, a expressão do rapaz mostrando todo pânico que ele estava sofrendo se abrandando quando ele encarou os olhos calmos dela, todo amor que a garota sentia por ele se espalhando entre eles.
O primeiro instinto de foi balançar a cabeça na direção de , negando a ela o que ele sabia que ela considerava ser seus últimos momentos juntos, porque não poderia ser. Ele não estava pronto para se despedir, não estava pronto para deixá-la, não estava pronto para deixar esse mundo. Mas bastou apenas um pequeno puxão em seu pulso para que o rapaz se rendesse, já se inclinando na direção dela, os lábios conectando sem pensar muito, qualquer última respiração que tivessem se esvaiu assim que o beijo começou.
E depois disso, tudo ficou escuro.
...
acordou subitamente, o corpo todo tremendo e implorando por ar. Suas mãos presas com força na gola da camiseta, puxando-as para longe da garganta o máximo que conseguia. Aquele sonho era algo constante desde o acidente, desde que ele acordou numa cama de hospital e descobriu que ele havia sobrevivido, mas não sua namorada.
No primeiro momento, ele não conseguia acreditar. Queria achar alguém que pudesse negar tudo aquilo, queria que ela fosse até ele e dissesse que era uma piada de mau gosto, que ela estava bem que não iria a lugar algum sem ele, mas quando finalmente foi liberado do hospital, começou a duvidar. Ele não podia acreditar, não queria acreditar que isso tinha acontecido.
E tudo ficou real quando ele foi ao funeral dela, porque até então, tudo parecia ser apenas um pesadelo, como se estivesse vivendo num limbo que ele não conseguia acordar rapidamente. A visão de deitada sem se mexer no caixão o desmoronou mais do que qualquer outra coisa no mundo poderia e não conseguia acreditar que ele era o culpado. Era ele quem deveria ter morrido, não ela e seu semblante sempre alegre e presença espirituosa.
Ele se sentia sem esperança. Não comia, não dormia. Tudo o que fazia era ficar na casa de seus pais pelo que poderia parecer uma eternidade, mas o rapaz não queria voltar para aquela casa, a mesma que continha tantas memórias deles, tantos momentos nos quais eles foram um casal feliz. não conseguiria encarar as fotos espalhadas pela sala de estar ou a cama desfeita que tinham deixado naquele dia. Tudo o que podia fazer era olhar do lado de dentro do seu carro e fingir que aquela era a vida de outra pessoa, não a dele.
Houve uma pequena batida na porta de seu quarto, o rosto de sua mãe aparecendo na estreita abertura que ela conseguiu abrir, um sorriso singelo no rosto enquanto olhava para o rapaz que tinha os olhos perdidos na semiescuridão do quarto.
- Você está bem? - ela perguntou num sussurro, seus pés a levando até a beirada da cama de , os olhos procurando por algum sinal de aflição em seu semblante. Ela sabia que o filho estava tendo dificuldades em aceitar tudo, sabia que ele se culpava, sabia que ele queria fingir que nada tinha acontecido e ela sabia que ele não queria se livrar da bolha de proteção que havia criado ao redor de si, mas ele também precisava continuar com sua vida.
apenas balançou a cabeça, os olhos não encontrando os da mãe, como de costume. Nada estava ok e ele estava cansado de fingir que sim.
Ele ouviu um suspiro e sentiu a cama afundando ao seu lado, claramente significando que sua mãe tinha decidido ignorar seus pedidos para ser deixado sozinho e tinha sentado ao seu lado. Demorou um pouco até que ela dissesse algo, mas ela finalmente limpou a garganta, sua mão, bem menor do que a dele, correndo pelos cabelos bagunçados do filho numa carícia suave.
- Eu sei que está tudo muito difícil, , mas você não pode continuar se escondendo. A vida continua.
O silêncio que se seguiu após sua fala, era esperado. A mulher não esperava que ele fosse concordar com o que ela tinha dito, mas também não imaginou a explosão que veio dele.
- Que vida? - ele interrogou, os lábios tremendo enquanto tentava impedir as lágrimas que teimavam em aparecer em seus olhos. - Não existe vida, mãe. Eu morri quando ela morreu!
Não havia esperança. Ninguém jamais entenderia como ele realmente se sentia, o quanto a culpa o comia vivo, o quanto seu coração estava vazio e não havia ninguém que o poderia ajudar com isso. Ele era assombrado pelo fantasma do sorriso de todos os minutos, como uma música que não sai da sua cabeça por mais que tente ouvir outras. Não havia esperança para .
O rapaz não percebeu quando sua mãe saiu de seu lado, a porta entreaberta enquanto uma pequena faixa de luz iluminava a mesa de cabeceira, fazendo com que o único objeto dela do qual ele não conseguia se desfazer, brilhasse. Num movimento repentino, sua mão procurou pelo seu telefone, os dedos tremendo enquanto digitava os números que tinha memorizado anos atrás, escutando enquanto a linha chamava e chamava até que ele pudesse escutar.
- Alô, aqui é a e no momento eu não posso atender. Provavelmente estou fora agora então ligarei de volta assim que possível - NOAH! - ela riu no meio da mensagem e conseguia se lembrar daquele dia com clareza. Era como tê-la novamente ao seu lado, como se nada tivesse acontecido.
O clique que indicava o final da mensagem gravada tocou, fazendo o rapaz desligar seu telefone apenas para discar o mesmo número mais uma vez, o coração martelando contra o peito. Era a primeira vez que ele ouvia a voz dela em um longo tempo.
se deitou na cama de novo, o travesseiro envolvendo sua cabeça enquanto continuava ligando para o número de e escutar sua voz, a única evidência que ele agora tinha de que ela tinha sido real. E foi então que as lágrimas vieram, caindo como cascatas por suas bochechas, sem vergonha em mostrar seus verdadeiros sentimentos.
...
É comumente espalhado que o tempo cura qualquer coisa, que quando se envelhece e supera tudo o que se passou, as feridas abertas começam a fechar, as cicatrizes começam a desaparecer até que resta apenas uma dor dormente dentro de você, algo que quase não incomoda mais. Esse sentimento apenas o abraça de modo gélido, te lembrando de algo que antes era.
Se as memórias forem boas, você sorri com elas, seu coração desejando pelo tempo no qual foi feliz, pelas pessoas que tinha em sua vida. Se forem ruins, é como se todo o seu corpo fosse paralisado no lugar, vívidos pesadelos correndo por todo seu ser. Mas o que poderia ser quando eram ambos os sentimentos ao mesmo tempo?
Seria possível superar algo ruim que tinha acontecido quando a única pessoa que poderia te tirar disso era a única que você não poderia ter? Seria possível, em algum momento, seguir com a sua vida quando você não tem a pessoa que significa mais do que a sua própria vida ao seu lado? E se fosse possível, quanto tempo demoraria até que você pegasse os pedaços de si mesmo e se tornasse inteiro novamente? Quantos anos? Um? Dois? Cinco? Para sempre?
Isso era algo que estava se perguntando já havia algum tempo, seu corpo todo mergulhado no que só poderia ser descrito como um vazio de sentimentos. O rapaz que uma vez havia sido tão feliz e espontâneo tinha sido reduzido a uma pilha de ossos espalhados pela cama sem nenhuma cerimônia, os olhos antes tão cheios de vida, tão lindos quando brilhavam sob a luz do sol continuam nada mais do que dor, uma cor apagada agora agraciando suas feições.
Ele tentou superar, tentou seguir em frente com a sua vida e não pensar nela, não pensar naquela noite e apenas continuar com sua vida, mas, como ele tinha dito para sua mãe, não havia vida sem ela, não havia razão para viver quando ele não podia compartilhar nada mais com ela. E era isso que o levou a uma constante semivida, uma que ele não poderia exatamente chamar disso, uma que que consistia em passar seus dias bêbados, tentando amortecer a dor que seu coração parecia sofrer, tentando esquecer o sentimento do seu peito vazio enquanto encarava, sem enxergar nada, as paredes que o cercavam, a cor de creme levemente apagada antes de ele se mudar para lá, o estado precário do pequeno apartamento não o incomodando.
Nada o incomodava, para falar a verdade. tinha, voluntariamente, desistido de todo tipo de conforto que ele tinha antes do acidente, todo tipo de suporte, todo tipo de senso. Ele estava vazio por dentro e seu corpo estava fazendo apenas o essencial para se manter vivo. E como ele odiava isso. Odiava que tinha que viver quando ela tinha morrido; odiava ter que encarar todo mundo no funeral dela e explicar que era tudo culpa sua; odiava que ele tivesse que continuar sem ela; odiava tudo, mas acima de tudo, odiava a si mesmo.
não se lembrava de ter adormecido naquela noite. Em um segundo, estava sentado na frente da TV e no outro acordando em um quarto vazio, nenhuma decoração ou pista que pudesse dar a ele alguma indicação de onde estava. Talvez dessa vez ele realmente tinha conseguido. Talvez, dessa vez, ele tinha bebido o suficiente para fazer com que seu fígado parasse e o matasse instantaneamente. Ou talvez tivessem sido as pílulas para dormir que ele tinha tomado momentos antes. E por que não uma mistura das duas coisas? Ele podia apenas torcer para que tivesse funcionado dessa vez, porque estava cansado de tentar.
A falta de atividade ao redor dele não parecia nem um pouco suspeita; se houvesse Céu e Inferno, ele certamente não seria mandado para o Céu depois de tudo o que havia feito, mas não esperava que o Inferno fosse tão… calmo e quieto. Era estranho ter aquele quarto, aquele espaço enorme, só para ele. O que deveria acontecer a seguir?
Como se respondendo à pergunta que ele havia feito, havia uma pequena figura à distância, sua aparência completamente escondida pelo espaço que havia entre eles, mas sabia que estava indo em sua direção. Talvez aquele fosse o Purgatório, ele não sabia exatamente como aquelas coisas funcionavam, mas algo, definitivamente, iria acontecer com ele.
poderia ter se preparado por anos, ele poderia saber tudo o que aconteceria com ele durante toda sua vida, mas nada, absolutamente nada, poderia tê-lo preparado para o que estava se aproximando dele, a feição angélica emoldurada pelo longo cabelo, caindo atrás dos ombros dela em lindas ondas, brilhando no quarto branco como nunca. Ela estava vestindo sua calça jeans favorita, que vinha até a cintura, e uma blusa vermelha de alcinha, algo que usaria em qualquer dia. Era sua roupa de sempre.
O homem de cabelos cor de chocolate sentiu seu coração errar o passo - se ele tivesse um -, as palmas das mãos suando e os olhos arregalados enquanto olhava para ela, tão linda, tão serena, um sorriso em seu rosto enquanto dava os passos finais que os separavam, as mãos da garota buscando por ele lentamente, como que se com medo de como ele iria reagir na presença dela.
- Você está aqui, - foram as primeiras palavras que saíram dos lábios de , a voz um pouco rouca pela falta de escolhas saudáveis que tinha feito em sua vida. Ela concordou, o sorriso nunca saindo de seu semblante, os olhos brilhando sobre a fonte de luz desconhecida enquanto ela olhava para ele, mas havia algo escondido por trás das órbitas castanhas de . - Então isso significa que eu consegui, - ele disse, as mãos se fechando ao redor das dela, puxando-a para mais perto, abraçando-a no que parecia ser o mais longo período de tempo que já a teve em seus braços.
Sentir o peito dela contra o dele, sentir os braços dela se fechando ao redor dele e senti-la repousar a cabeça debaixo de seu queixo era demais para ele. Havia um caroço inevitável se formando na garganta de , fechando suas vias aéreas, tornando a respiração mais difícil. Ele podia sentir lágrimas começando a se formar em seus olhos, ameaçando derramar a qualquer momento antes que pudesse impedi-las. Todo seu corpo tremia num completo estado de euforia.
- Você fez o que? - ela murmurou contra o peito dele, o nariz esfregando contra o tecido da camiseta do rapaz, inalando profundamente o perfume dele, tentando memorizar o aroma antes que o tempo dela acabasse.
- Eu morri, - ele deu de ombros. - Não achei que estaria onde quer que você estivesse, mas apenas te ver e te abraçar é o suficiente pra mim.
deu um passo para trás, os olhos piscando algumas vezes enquanto tentava entender o que acabara de ser dito. Ele realmente pensava que tinha morrido? Não era isso que deveria acontecer, não era isso o que tinha acontecido. Ela ainda podia sentir as batidas do coração dele, batendo firmemente contra a bochecha dela, bombeando sangue nas veias dele. Não, ele ainda estava muito vivo. Ela, por outro lado…
- Você não está morto, - ela declarou com obviedade, a cabeça pendendo para o lado enquanto o olhava de cima a baixo. Ele parecia muito magro, com olheiras evidenciadas e uma falta de vida que ela nunca tinha visto. Ele parecia mesmo como alguém morto, mas ela sabia que não era verdade.
- Eu não estou…? - a expressão de era de completa surpresa. Como ele poderia estar vivo se estava com ela? - Como pode ser? Você morreu… Eles me disseram que você morreu! - A aflição dele era visível, o jeito que as mãos corriam pelo cabelo copiosamente, bagunçando as mechas marrons ainda mais. Ele não podia entender o que estava acontecendo. - Como você está aqui? Estou provavelmente delirando, - balançou a cabeça. - Não pode ser verdade.
Se livrando dela, deu as costas para a garota à sua frente, a respiração travando no fundo da garganta. Ele finalmente conseguiu enlouquecer.
- , - ela sussurrou dando pequenos passos na direção dele mais uma vez, as mãos pequenas entrando em contato com as costas dele numa carícia, tentando transmitir todo sentimento que ela possuía no momento. Ela queria que ele estivesse em paz, ela precisava que ele ficasse calmo. Ela precisava que ele entendesse por que estava lá. - Eu estou morta, - suspirou. - Você, entretanto, não está. - Havia um sorriso genuíno no rosto dela, como se o fato de que ele estivesse a salvo aquietasse o coração dela. E aquietava. - Você não vai morrer por muito tempo, amor.
- Isso não deveria acontecer, - ele resmungou, a secura em sua garganta de volta, traindo suas palavras. Ele tinha a intenção de soar confidente, ele queria que ela acreditasse que não queria estar vivo quando ela não estava. - Eu deveria estar morto. Sou eu quem deveria estar enterrado, eu que deveria ter morrido aquela noite no carro, - as lágrimas começaram a fluir então, rolando por sua pele beijada pelo sol como rios, brilhando sobre a luzes. Ele parecia desesperado, como uma criança que se perde dos pais e não queria nada mais do que puxá-lo para si e niná-lo em seus braços, sussurrando palavras calmas em seu ouvido enquanto dizia que tudo ficaria bem.
E foi isso o que ela fez. Ela procurou por ele, trazendo seu corpo bem mais alto que o dela até sua altura, as mãos segurando a cabeça dele com ternura, fazendo com que ele olhasse nos olhos dela mais uma vez, dizendo a ele que tudo ficaria bem com apenas um olhar. Os soluços balançavam o corpo dele, como ondas da cabeça os pés. Ela podia senti-lo tremer contra seu tronco e a dor se instaurava sobre ela, algo que não julgou possível uma vez que estava morta. Mas, por mais que soasse insano, ela ainda sentia tudo que seu corpo humano era capaz de sentir, então, não havia como negar toda a dor que perpassava sobre ela diante do estado em que se encontrava.
Quando ela sentiu que ele tinha se acalmado um pouco, não totalmente porque seria impossível, ela acariciou a bochecha dele com ternura, um pequeno sorriso nos lábios enquanto olhava as lindas feições dele e o admirava.
- Você não sabe o que está dizendo, , - ela balançou a cabeça. - Não haveria como mudar os eventos daquela noite e eu prefiro que não o faça, - suspirou. - Você tem tanto o que viver, tanto o que fazer, tanto que alcançar. Eu fiz a minha parte, minha missão lá embaixo havia acabado, mas a sua está só começando.
balançou a cabeça. Ele não podia acreditar em uma palavra do que ela estava dizendo. Ele não poderia se deixar acreditar que ele deveria viver sem ela, que o tempo dela era muito mais curto que o dele. Ela era uma pessoa muito melhor, tinha grandes planos para o futuro, queria fazer tanta coisa. Como ele poderia ficar ali e escutar dizer que tinha completado seu trabalho?
- É minha culpa, - ele insistiu, as lágrimas mais uma vez enchendo-lhe os olhos. Nesse momento, era inútil segurá-las, era inútil tentar agir como se ele estivesse bem. - É minha falta que o seu tempo para fazer tudo o que queria acabou. Como eu posso viver com isso?
respirou fundo, os olhos ameaçando derramar-se em lágrimas também à medida que olhava para ele. não era ele mesmo desde que ela havia morrido, não tinha se deixado seguir em frente, não tinha se deixado curar e lá estava ele, dizendo a ela que deveria ter sido ele, se culpando pelo que aconteceu quando não era culpa de ninguém. Ela escolheu isso. Ela escolheu dar a ele sua última respiração e salvá-lo.
- Foi escolha minha, , - ela murmurou. - Eu queria te ver vivo, eu queria te ver envelhecer, se não comigo, então com alguém. Eu te amei demais para te deixar ir, você entende isso? Eu te amo demais para deixá-lo gastar a sua vida do jeito que tem feito.
O silêncio entre eles era ensurdecedor. E então, chegou à conclusão de que ela estava o assistindo, ela o assistia enquanto ele tomava cada decisão estúpida que fazia e tinha, incontáveis vezes, tentado gritar com ele, fazê-lo para, implorar para que ele não se machucasse. E aquele tinha sido o jeito que encontrou para conversar com ele.
- É, amor, eu estive com você esse tempo todo, - ela sussurrou, o lábio inferior tremendo ao pensar em tudo o que ele tinha passado. - E eu só quero que você seja feliz. Eu quero que você viva sua vida completamente. Você tem tanto para fazer, tanto potencial. Você vai ter uma vida maravilhosa, .
Os braços dele a fecharam num abraço apertado, um que ele não tinha a intenção de interromper tão brevemente, um que transmitia todo pequeno sentimento que ele tinha dentro de si e ela aceitou. Ela aceitou tudo o que ele tinha para dar para ela, tudo que ela sentiu falta nos últimos meses, tudo que ela nunca seria capaz de sentir novamente.
- Eu senti tanto a sua falta, - ele chorou, as mãos correndo para cima e para baixo pelas costas dela, os lábios, de um jeito desastrado, deixando beijos gentilmente pelo rosto dela.
- Eu também senti sua falta, - ela sussurrou de volta, um pequeno soluço escapando-lhe dos lábios. Era egoísta, mas ela não estava preparada para dizer adeus a ele até então. - Mas você tem que me prometer, - ela começou, afastando a cabeça do corpo dele por um momento. - Tem que me prometer que você vai seguir em frente, . Que você vai se dar uma vida melhor, que você vai se tirar desse buraco que cavou e que vai ser melhor para você mesmo. Por favor.
suspirou. Ele nunca seria capaz de mentir para ela, ele nunca diria a ela que iria fazer algo e então fazer o oposto do que tinha prometido. E ele sabia que ela acharia um jeito de fazê-lo continuar em sua promessa estando viva ou não. Então ele concordou, uma certeza em seus olhos que ele não sabia possuir, mas por ela… Por ela ele faria o impossível.
- Obrigada, - ela sorriu. - E lembre-se que eu estarei sempre ao seu lado, não importa o que vier. Você pode não me ver, mas eu estou lá, tomando conta de você.
- Por que parece que isso é um adeus? - ele tombou a cabeça para o lado, a pergunta o fazendo soar como uma criança tentando negociar mais algum tempo no parquinho. - Eu não quero que você vá.
- Eu tenho que ir, - ela disse simplesmente, o semblante um pouco mais relaxado agora que tinha conversado com ele. - Você vai acordar daqui a pouco.
tomou em seus braços uma última vezes, os lábios levemente tocando os dela como se fosse um pecado fazê-lo, beijando-a tão gentilmente que ela duvidou existir um toque entre eles. E então, ele a soltou, uma nova leva de lágrimas prontas para se derramarem a qualquer instante.
- A vida é longa, , - ela brincou, um sorriso no rosto enquanto esperava que ele entendesse a referência.
- E você ainda é linda, amor, - ele completou, um sorriso adornando todos seus lábios agora, ficando lá até, eventualmente, tudo ao redor dele parecer sumir, lentamente, a última coisa capturando seus olhos sendo o lindo rosto dela.
acordou de súbito, o murmúrio baixo vindo da TV entrando por seus ouvidos no momento em que abriu os olhos e deu de cara com um quarto vazio.
Por um momento, ele duvidou de tudo, duvidou que tivesse se colocado em uma ilusão e que nada tinha sido real. Mas então ele respirou fundo, o cheiro fraco do perfume dela pairando sobre o ar, a sensação de formigamento nos lábios que sempre aconteciam quando ele a beijava ainda era sentido em sua pele. Se não tivesse sido real, como ele ainda poderia senti-la olhando para ele, seu olhar penetrante o desafiando a não seguir suas ordens?
Ainda havia a dor em seu peito, mas estava muito mais fraca agora, como se alguém tivesse tomado conta de seus machucados e estivesse suportando o fardo que ele estivera carregando sozinho.
Um sorriso apareceu em seu rosto sem que percebesse. Agora ele sabia que ela nunca o abandonaria. Agora ele sabia que ela sempre o puxaria de volta do precipício. Dessa vez, ele iria conseguir.