Cruzar aquela porta foi mais difícil do que imaginei. Londres estava fria e o pequeno choque térmico que senti antes de me sentar à mesma mesa foi, ao mesmo tempo, indesejado e bem-vindo. Lá fora, pequenos flocos de neve dançavam no ar, contrastando com o ambiente acolhedor e minuciosamente decorado para o natal. A vista para a London Bridge era sempre um momento de paz, que agora perdia feio para as flores que circundavam as janelas, entrelaçadas em pisca pisca, e os vasos com um tipo de árvore cor-de-rosa que eu não conhecia, todos a carater. Sorri ao notar que cápsulas de café faziam a vez das bolas natalinas. Aquela era, sem dúvidas, a melhor e mais bonita cafeteria da cidade.
Paz. Fechei os olhos por um segundo, deixando a emoção se instalar. Minhas bochechas voltavam à vida aos poucos, assim como a ponta do meu nariz, e respirei profunda e calmamente, sorrindo, um pouco constrangida, ao abrir os olhos.
- Boa tarde - ele disse, o mesmo sorriso acolhedor e simpático. - Desculpe, não queria interromper seu momento.
- Não interrompeu - respondi baixinho, aumentando um pouco o tom em seguida. - Vocês fizeram o melhor dos trabalhos aqui. A ideia com as cápsulas foi ótima!
- Obrigado, foi minha - sorriu abertamente, olhando ao redor. - Fico feliz que tenha gostado. Como posso te ajudar?
- Só um café expresso, por favor.
Ele anotou o pedido na comanda, colocando-a dentro do potinho - agora natalino - como de costume e olhou brevemente para o espaço vazio a minha frente.
- É só você hoje? - apertei os lábios, imitando meu coração, e assenti com um leve sorriso de lado. - Tá certo, já trago.
Vi-o se afastar, deixando apenas o rastro do perfume suave e gostoso, e olhei para o lado de fora, brincando com o potinho da comanda entre as mãos. Voltar ali depois de tudo não estava sendo fácil, mas era necessário para que as lembranças não dominassem minha mente como algo ruim - o que, de fato, nunca foi.
Mas, caramba, como doia.
- Aqui está - a voz dele me tirou do transe e agradeci com o sorriso mais simpático que consegui dar, sendo retribuída antes dele se afastar novamente. E ali, sozinha com meu café e meus pensamentos, observei o movimento, as pessoas e a rua pelos próximos vinte minutos.
Paz. Tristeza. Alegria. Dor. Risos. Lágrimas. Engraçado como a vida leva e traz. Não necessariamente nessa ordem, minha expressão mudava conforme minha mente liberava os químicos que meu coração interpretava - amistoso, saudoso, magoado, partido. Talvez isso fosse o tal do ponto zero, onde tudo é nada e nada é tudo.
Eu vi quando ele deslizou o prato sobre a mesa.
- Por conta da casa.
Cheesecake de frutas vermelhas, talvez o mais bonito pedaço no prato delicadamente montado que já vi. Sorri, olhando para o par de olhos que me olhava de volta.
- Você não precisa.
- Eu sei - ele disse baixo. -, mas você é uma cliente fiel à casa e o natal me deixa meio mole.
Ri com a pequena careta. Ele usava jeans e All Star pretos, assim como a polo, que tinha o símbolo da cafeteria borbado em dourado. O broche, da mesma cor, carregava seu nome - e, pela primeira vez em um ano, notei que não o sabia.
- Obrigada, .
Ele pareceu apreciar o fato de, pela primeira vez, tê-lo chamado pelo nome, e me repreendi mentalmente por nunca ter reparado. Era sempre ele que nos atendia - sempre -, mas acho que estava ocupada demais prestando atenção em cada detalhe de um outro rosto para perceber qualquer coisa a minha volta.
- Se precisar de mais alguma coisa, é só chamar. Espero que adoce um pouco seu dia, - arqueei as sobrancelhas, surpresa por ele saber o meu. - Por mais clichê que isso soe.
Minha voz fez com que ele interrompesse o giro para se afastar.
- Você sabe meu nome? - assentiu, aparentemente um pouco cauteloso.
- Já ouvi seu ex-namorado dizê-lo - adquirindo vida própria, o arco nas minhas sobrancelhas aumentou. Ele sorriu de lado de uma forma meio constrangida, apertando um pouco os olhos ao baixar a cabeça antes de voltar a me olhar. - Desculpe, eu... reparo bastante nas coisas... nem sempre é um hábito muito saudável.
tinha ficado verdadeiramente embaraçado, o que achei fofo - palavra que nunca me passava pela cabeça -, e me vi curiosa.
- Posso perguntar o que me entregou? - ele colocou as mãos nos bolsos, entortando a boca por um segundo.
- Seu rosto depois de três meses sem vir aqui.
A resposta dele não foi espantosa, era uma conclusão bastante óbvia para qualquer um que tivesse o mínimo de poder de observação, e, por um motivo estranho a mim, gostei que ele o tivesse feito, talvez por aquilo me fazer sentir um pouco menos sozinha naquela tarde e naquela cidade.
- Quer sentar? - a pergunta saiu da minha boca, surpreendendo a nós dois. levantou as sobrancelhas e olhou o espaço vazio a minha frente antes de voltar a me olhar, sustentando-o. Não sabia por que tinha feito aquilo, mas não me senti mal. - Desculpe, isso foi meio do nada e você tá trabalhando... - agitei a cabeça como se pudesse espantar a situação com ela, uma risada meio sem graça no meio, e olhei para meus dedos apertados em volta da xícara. sentou.
Nós nos olhamos por cerca de cinco segundos e aí ele esticou a mão.
- Prazer. - ri, apertando-a.
- . O prazer é meu.
Ficamos em silêncio por cerca de mais cinco segundos, os braços dele cruzados sobre a mesa e a cabeça ligeiramente inclinada enquanto me olhava com um misto de diversão e contentamento. Reprimi um riso, porque era isso o que fazia quando me sentia desconfortável de um jeito bom, e voltei a atenção ao cheesecake, dando a primeira garfada. O natal dançou na minha língua.
- Seu chefe não vai achar ruim de você estar sentado aqui?
sorriu gentil e negou com a cabeça, a mesma expressão no rosto.
- Não.
- Tem certeza? - ele ajeitou a cabeça.
- Você tá falando com meu chefe.
Aquela resposta, sim, foi espantosa.
- Desculpe, você é dono desse café? - enfatizei e apenas assentiu. - Uau... e você atende?
- Eu comecei a trabalhar aos dezesseis como estoquista em um café - começou, as palavras saindo tranquilas no sotaque encantador. - Fui promovido a vendedor, depois à caixa, depois passei a executar alguma coisa na parte administrativa... nessa época, já era bem amigo do dono, que confiava muito em mim. As coisas foram acontecendo, ele não tinha filhos e era sozinho e, quando faleceu, deixou o café pra mim - senti meus olhos quase arregalarem e brincou com minha reação. - Certo? - rimos. - Esse lugar era a vida dele e passou a ser a minha também, então eu mantenho os hábitos que me levaram a ser presenteado por ele e pela vida. Eu sou dono, mas limpo o chão.
Um ponto de luz acendeu em minha mente, me fazendo mostrar os dentes instantaneamente. Eu nunca tinha ouvido ninguém falar naqueles termos.
- Essa foi a coisa mais madura que já ouvi na minha vida. Agora entendo por que gostei desse lugar de cara - confessei e pareceu confuso. - Da pra sentir o amor.
- Isso é muito bom de ouvir - e lá estava o mesmo sorriso gentil de novo, não exatamente nos lábios, e alguma coisa na minha expressão chamou a atenção dele. - O quê?
- Você sorri com o olhar. É bonito.
Nós nos olhamos por alguns segundos antes de desviarmos, quase no mesmo momento, a atenção. Voltei para o cheesecake, que ficava mais ridículo de bom a cada mordida.
- O que você faz?
- Eu sou compositora.
- Uau - um brilho correu o rosto dele. - Fale mais.
- Bom, eu dei aulas de piano durante a faculdade e resolvi fazer uma pós em trilha sonora. Trabalhei em alguns filmes, nenhum muito conhecido, e aí surgiu a oportunidade de emprego aqui em Londres. Hoje, divido meu tempo entre compor e ensinar.
- Isso é fascinante, - disse com sinceridade e gostei de como meu apelido soou na voz dele. - E há quanto tempo está aqui?
- Faz um ano hoje.
- Nesse caso, vou ter que oferecer outro cheesecake - brincou, me fazendo negar durante um gole.
- Se for pra oferecer, que seja outro café - brinquei de volta, mas ele levou a sério e fez um gesto para algum atendente. - Eu estou brincando, por favor, você já fez demais!
- Demais? Eu só te ofereci um pedaço do paraíso, agora me deixe te presentear pelo seu um ano aqui pra que queira ficar mais.
Aquilo me fez rir com mais vontade e, de repente, eu estava me sentindo melhor. Não demorou até que duas xícaras estivessem a nossa frente.
- Eu já era fiel antes, agora, então...
- Fico feliz que tenha voltado, por um momento achei que não te veria de novo.
- Por um momento, eu também. Acho que essa é uma das piores partes sobre terminar um relacionamento, sabe, deixar de frequentar seus lugares favoritos por causa das memórias...
- Eu entendo, não consigo pisar num certo restaurante até hoje - soou pensativo, balançando a cabeça em seguida. - Obrigado por nos dar uma segunda chance.
- Acho que esse café falou mais alto.
- Temos uma viciada? - perguntou com diversão, e ri.
- Você nem faz ideia, eu amo café.
- Não julgo - disse entre um gesto de mãos, as palmas para cima como se mostrasse o lugar, e ri mais uma vez.
- Qual seu favorito?
- Puro e forte.
- Ah, você sabe do que tá falando... - balancei a cabeça num movimento propositalmente exagerado, fazendo-o mostrar os dentes imperfeitos, mas charmosos, como ele mesmo. era um homem muito bonito e eu tinha certeza de que ele sabia disso, apesar de não parecer usar o fato como vantagem.
- Sinto muito pelo término - falou depois de um tempo. - Vocês pareciam se dar bem.
- É, eu também. Algumas coisas são imprevisíveis - confessei e ele continuou me olhando, dando espaço para seguir ou não no assunto. Não sabia o que falar, mas não era como se tivesse amigos próximos pros quais pudesse ligar de madrugada. - A gente se conheceu logo quando me mudei pra cá e foi tudo muito rápido. Eu me apaixonei de cara.
- Você não precisa - ele disse baixo quando me demorei na busca pelas palavras. Um gole de café e continuei.
- Tá tudo bem - sorri, então ele voltou a apoiar os antebraços na mesa. - A gente teve o namoro perfeito, sabe? Nenhuma briga, poucos momentos ruins e o era o tipo de cara que fazia de tudo pra me ver bem... foi o melhor ano da minha vida - fiz uma pausa para respirar sob o olhar verdadeiramente interessado dele. - O é tradutor e conseguiu o trabalho dos sonhos dele na Austrália.
Vi o semblante de mudar de interessado para pesaroso.
- Caramba... e, desculpe se for muita intromissão, mas não quiseram tentar à distância?
- Eu não quis - confessei. - Ele já estava viajando bastante nos últimos meses e, como intérprete, o céu é o limite. Ele fez a escolha dele, e não o culpo, e nunca pediria pra que ele ficasse... às vezes as coisas só acontecem.
Houve um momento de silêncio no qual eu brinquei com o doce enquanto refletia sobre minhas palavras. Eu não sabia o que dizer depois disso, talvez ele também não.
- Deve ter sido difícil pra ele tomar a decisão - quebrou, os olhos ainda um pouco distantes antes de focarem os meus. - Vocês pareciam o tipo de casal ideal mesmo, achava bonita a interação entre vocês, e confesso que sempre senti uma ponta de inveja dele.
Interrompi meus movimentos, deixando a xícara no ar por um segundo antes de voltá-la à mesa.
- Inveja?
- No bom sentido, não me entenda mal - se explicou, baixando o olhar para seu café antes de continuar, um tanto quanto... tímido? - Você é, provavelmente, a mulher mais linda que eu já vi.
Não soube dizer se foi o vento gelado que entrava quando a porta se abria, mas um calafrio pequenininho correu minha nuca, fazendo minha cabeça se inclinar brevemente na mesma direção. Apertei os dedos em volta da xícara, de repente tensionando os ombros, e sorri involuntariamente, um tanto quanto... tímida?
- Obrigada - murmurei.
- Desculpe, não era minha intenção te deixar sem graça.
- Não, tá tudo bem, eu só não... esperava... - comprimi os lábios, baixando o olhar por um momento e, quando o subi, ainda me olhava, as írises perdidas no meu coque frouxo. Deixei as minhas correrem seu rosto por um instante, me sentindo bem e mal ao mesmo tempo. - Você é lindo - a surpresa cortou o rosto dele com a mesma intensidade que cortou a minha. -, mas eu ainda não estou preparada pra sair com ninguém.
arqueou de leve as sobrancelhas, sorrindo com diversão, e sua voz saiu da forma mais doce e gentil o possível.
- Eu não te chamei pra sair.
Eu quis morrer naquele instante. Minhas bochechas arderam como um prédio em chamas, o fogo se espalhando por todo meu corpo enquanto minha mente procurava desesperadamente por um lugar para enfiar minha cara. Não sabia se ria, chorava, saia correndo ou continuava ali, estática, paralizada, ardendo em vergonha da ponta do pé ao topo da cabeça. Céus, o que eu estava pensando?
- Você pode, por favor, quebrar os vidros da porta pra que eu consiga passar por ela com meu ego? - perguntei com os olhos colados no líquido preto, os dedos agora tão apertados que poderiam despedaçar a porcelana. soltou uma risada mais alta e descontraída, me fazendo tomar coragem para olhá-lo por cima e relaxar um pouco. - Nossa, me desculpe, eu não sei por que disse aquilo...
- Porque tá na cara que eu quero te chamar pra sair - olhei-o agora de verdade, os músculos divididos entre tensioar e destensionar. - Mas não vou fazê-lo porque sei que você não está pronta para isso e porque seu ex-namorado parece ter dificultado bastante as coisas pra qualquer um.
Mordi o lábio inferior, o rosto ainda queimando de vergonha, mas consegui sorrir e me render um pouco à situação. Assim que meu corpo recuperou uma parcela maior de movimentos, encostei na cadeira e soltei a xícara, espalmando as mãos na madeira branca da mesa.
- Não vou dizer que não é verdade...
- Desculpe por te constranger, de verdade.
- Não se desculpe, eu que coloquei uma coisa na frente da outra... céus, quantas emoções hoje - brinquei, divertindo-o.
- Como seria essa música?
- Não sei - pensei naquilo, repentinamente recebendo três linhas prontas na minha cabeça. - Mas, se um dia sair, te mostro primeiro.
- Eu iria adorar isso.
Os flocos de neve ainda dançavam lá fora, esbranquiçando a rua. Ali dentro, tudo o que vi pelo próximo minuto foi o mar de ondas se quebrar suave em mim, e me permiti observar e ser observada pela primeira vez em três meses. exalava calma e serenidade, embora seu olhar me causasse a sensação de que ele era muito mais interessante do que mostrava. Nós sorríamos mini sorrisos que duraram até o momento em que o rosto de se confundiu com o dele, as imagens sobrepostas brincando de despertar emoções contraditórias. Eu tinha muitas lembranças dele naquele café e leu meu rosto com a facilidade que também o fazia.
- Espero que você volte em breve, . Quem sabe, um dia, não só pelo café.
se levantou e tirou a comanda de dentro do pote, levando-a com ele, e fiz o mesmo apenas quando ele desapareceu café a dentro. Tive dificuldade de andar até o caixa para comprar uma garrafa de água porque minhas pernas pareciam adormecidas, e a menina, que estava no celular, pediu educadamente para que eu aguardasse um momento com um gesto de mão.
- Você acha que da tempo? A festa surpresa do chefe é em duas horas... ok... certo... eu vejo o que faço então - ela desligou e sorriu para mim. - Olá!
- Uma garrafa de água, por favor.
- Certo... aqui está. Algo mais?
- Desculpe, mas você disse algo sobre festa surpresa... - deixei a frase morrer no ar, incerta sobre como perguntar.
- Ah, sim, hoje é aniversário do chefe e nós vamos dar uma festinha surpresa pra ele aqui depois do expediente - confessou baixinho, levando o indicador ao lábio ao terminar.
- O , certo? - ela assentiu. - Qual a coisa favorita dele no cardápio?
- Café puro e torrada francesa com queijo.
- Você poderia, por favor, embalar e entregar a ele como um presente meu?
A menina ficou um pouco surpresa, mas assentiu prontamente.
- Quer deixar algum bilhete? - afirmei com a cabeça e recebi uma caneta e um cartão.
Obrigada por tornar meu dia mais leve.
Feliz aniversário.
Nos vemos em breve.
Engraçado como a vida leva e traz.
Fim.
Nota da autora: Espero que tenha gostado tanto quanto eu gostei de escrever e pensar nessa cena!
Vou amar saber o que achou =D